Crônica de um Funeral

CRÔNICA DE UM FUNERAL

Já no meu modo de entender, morrer significa: abandonar as boas coisas da vida, livrar-se das dívidas e dos problemas angustiantes, livrar-se das perseguições dos credores, apagar-se, despojar-se dos bens conquistados com unhas e dentes e deixar tudo nas mãos de... Sabe lá Deus com quem.

A vantagem pra quem “bateu as botas”, é ouvir calado tantos elogios sem precisar expressar sua gratidão.

Tem aqueles que comparecem ao velório apenas por obrigação. Sabe como é, fazer média com os parentes, novas amizades e até para discutir um conveniente negócio. Em compensação, são forçados a agüentar até o momento de levar o defunto para a cidade dos pés juntos, embora isso seja para eles verdadeiro martírio. Na sala, aglomeram-se pequenos grupos para cochicharem em segredo. Deus sabe lá o que estarão comentando.

O tempo não passa. Muitos já estão cansados e não vêem a hora de dar o fora inventando uma desculpa qualquer, ou saem sem que ninguém veja; outros permanecem mesmo contra sua vontade, forçando um semblante fúnebre.

Tem aqueles mais sabidos, que chegam bem na hora do enterro. Vão até onde está o “esticadão”, fazem “o nome do padre” e fingem fazer uma prece.

Para disfarçar a inquietude da longa espera, todos passam a circular pelo salão. Isso também é uma velha tática para mostrar a cara, faz parte do esquema para evitar o falatório maldoso: “não vi fulano... cicrano não apareceu... Também não vi beltrano”.

De repente, acontece a uma inesperada metamorfose na cara dos presentes. Já se pode notar nos seus semblantes, uma alegria camuflada e contagiante. Um vozeirão de gente chega aos ouvidos. Certamente, é pelo contentamento de saber que a agonia vai terminar. Chegou a hora de fechar o caixão e levar o defunto. Ufa! Até que enfim! Com satisfação, todos já começam rezar juntos, com algum desafino entre os rezadores. Pronto! Lá se vai o “apagado”. Agora, todos querem ajudar carregá-lo, quanto mais rápido melhor. Aí também tem uma boa disputa, pois carregando o caixão, sempre aparecem mais. Aqueles que só acompanham sem fazer força ameaçam disfarçadamente, algum sorriso de alívio.

É claro que já cumpriram suas obrigações.

Ao descer o caixão na cova, os presentes batem palmas. Terminou o ato final. Mas uma dúvida paira no ar: as palmas seriam pelo desempenho do ator defunto, ou pelo contentamento de se verem livres dele? Sei não... Daí passam a jogar torrões de terra sobre o caixão que já está lá no fundo; seria por acaso para ajudar mais rápido o aterro? Também não sei não... A viúva, enquanto joga uma pétala de rosa sobre o caixão, entorta os olhos para algum futuro pretendente.

Mal terminada a cerimônia fúnebre, a maior parte dos presentes se mandam. Grupos de parentes aqui e ali, cochicham, possivelmente tentando chegar a um acordo na divisão dos bens deixados pelo finado. Parentes mais próximos dão uma ou duas choradas forçadas e, pronto acabou-se. As mulheres quase todas usam óculos escuros, mas por detrás deles, não se via nem uma santa lágrima. Parece que todo aquele pesadelo infernal dissipou-se como por encanto.

Ufa! Que alívio”. Provavelmente, é o que todos devem estar falando por dentro com o seu ego. Ora, tais sentimentos não podem ser expressos no meio de tanta gente, o que os outros vão falar?

No dia seguinte, cada parente retoma suas atividades normais. Aqueles que vieram de outras cidades, aproveitam para descansar uns dias e rever os amigos. É a oportunidade para pôr as fofocas em dia.

Do falecido, quase já nem se fala mais. Os poucos comentários são feitos com certa frieza. Só um ou outro parente relembra fatos ocorridos há algum tempo, ou faz alguns elogios à sua pessoa quando em vida.

No dia seguinte, após terem despachado o defunto, só alegria entre os parentes, até se reúnem para tomar umas e outras em memória do falecido.

Ele já era. Está bem guardado a sete palmos de terra.

Mas, se um dia ele sair dali...

Que Deus o tenha.

Luiz Pádua
Enviado por Luiz Pádua em 27/04/2007
Reeditado em 17/11/2008
Código do texto: T466166