Como locomover-se numa cidade entupida

COMO LOCOMOVER-SE NUMA CIDADE ENTUPIDA

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 22.01.14)

Conversinha típica à beira do mar no meio de um janeiro quente como um inferno com as respectivas mulheres no mesmo círculo, os dois casais sob um guarda-sol comum na areia. Falar do que com as madames ali, bebericando espumante de olhos e ouvidos atilados?

O futebol ainda não começou, o carnaval anda longe, a Copa mostra-se morna talvez porque a Seleção não precisou fazer força para participar, o que deixa o torcedor meio ressabiado, sem saber direito o que esperar do time, as eleições, mais distantes ainda, estão fora de cogitação nas especulações desocupadas especialmente porque as coligações não se definiram e tais definições definitivas certamente causarão enormes surpresas, pelo que recomendam a prudência e o bom senso que não se fale mal de ninguém, posto que o adversário de ontem até a manhã de hoje poderá muito bem ser o grande aliado da semana que vem, no próximo governo, já que a coerência foi banida da vida partidária, mas também não se vai falar de trabalho, assunto para ser tratado durante o expediente, jamais nos momentos de descanso e relaxamento que as férias sempre nos proporcionam, além disso o Natal, cada vez mais minguado como fonte de conversas e considerações de qualquer ordem, está esgotado desde o dia seguinte e o "Réveillon" já rendeu todas as fofocas, intrigas, maledicências, indiscrições e confissões, despido hoje da possibilidade de revelar novidades e cogitações originais.

O assunto calor estiolou-se em menos de dois minutos e meio ("Serão mais três dias de calor e muita radiação ultravioleta, depois cairá um vento Sul que soprará tempestades terríveis de raios, trovões e uma quantidade de granizo nunca antes vista neste País", pontificou um, ao que o outro retrucou, discordando: "Isso é o que o homem do tempo na TV garante, mas há séculos não existe meteorologista cujas previsões sejam cem por cento confiáveis, o que leva à conclusão de que, sendo assim, de pouco vale prever o tempo").

O natural, em verdade, seria observar com demora e gozo, na praia toda, e comentar sem rodeios ou travas, a abundância que lhes passa aos olhos ou que se deixa estar pelas cercanias: abundância de pés, braços, mãos, pescoços, cabeças, orelhas, cabelos, mas isso traria o risco considerável de deixar ao menos despeitadas suas respectivas consortes, as quais, além disso, poderiam muito bem retaliar pousando olhos e sorrisos sobre peitos cabeludos e pernas musculosas, para dizer o mínimo.

Assim, cidadãos conscientes e respeitáveis, só lhes resta discorrer reciprocamente suas preocupações cidadãs com relação à escassa mobilidade da cidade, ao menos da cidade que ambos conhecem muito bem, onde vivem, trabalham o ano inteiro e criam suas famílias.

- A não ser pra ganhar dinheiro, verdadeiras fortunas, não sei pra que tanto técnico dando palpite, realizando estudos e fazendo relatórios. Qualquer prefeito medianamente sagaz já teria percebido há muito o que todo mundo está vendo: as escolas, desde os berçários até as universidades, é que atravancam a cidade. Dê férias para essa gente toda e, mesmo com a invasão de turistas, encontra-se com facilidade lugar para estacionar no Centro a qualquer horário.

- Claro! Isso é transparente como água mineral! Se não consegue resolver o problema do transporte escolar, basta o prefeito proibir o funcionamento de todo e qualquer estabelecimento de ensino no município, incluindo os cursos de corte e costura. Na hora a cidade vira um paraíso.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.

Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"