PREGUIÇA DE PROSA
Ando com preguiça de escrever em prosa. Mas não sinto nessa eventual indolência o fastio de quem perdeu o gosto por um sabor de que está farto. Eu sinto fome de palavras como de alpiste o canário ou o lactente quer o peito sugar. Tenho sede de vocábulo como na planta a raiz precisa de água, o radical da palavra de que nasce a frase, como da semente vigoram folhas verdes.
A minha indolência não é indolor. Também não é “sensível à flor da pele”, como a da poesia. É uma apatia que, absurdamente, tenta explicar um querer sem vontade. Talvez isto dê sentido a este paradoxo ou à preguiça que sinto. Não é a letargia da ociosidade inerte que, aliás, é tudo a mesma coisa: nada. Minha preguiça de prosa se move; só não age, isto é, não produz. É uma causa sem efeito. Ainda bem. Mas, querendo ou não, dedilho (ou digito) pensamentos, riscando palavras. Soltas, elas vêm como folhas esparsas e se juntam num perfil sintático ou se desmembram. Às vezes, uma palavra me vem num zumbido aos ouvidos e eu a espanto como um mosquito inoportuno. Outras vezes, em minhas mãos, ponho-me a investigá-la como o poleá a mosca azul.*(1)
Quando não oral, prosear é uma forma de escrever. Escrever não é o (im) puro ato instintivo, como o sexual, embora este também se mova pela cabeça, ou melhor, pelo pensamento. É uma relação igualmente precedida de vontade, imaginação, criatividade, disposição, energia e tesão. Eu disse tesão? Vá lá. É um ato a se tornar um hábito, que, partindo das ideias do escritor, transita-lhe alma e corpo até escapar-lhe da mão ao papel. A mão do escritor, como o pincel do pintor, obedece-lhe a vontade num impulso criativo, dando cor às imagens da imaginação. Cada palavra, com sonoridade, luz e cor, também produz emoções e reações. Tem sangue e lágrimas, dá vida à visão do pensamento grafando ideias. Expressão da língua, dela a palavra é tradução. Instrumento de paz ou veneno mortífero, a palavra procede da língua, ou melhor, da boca que fala “do que está cheio o coração”.*(2)
Estou a escrever com preguiça de prosa. Negligencio ideias, mas "não jogo conversa fora”. Não escrevo nem falo “miolo de pote”. A preguiça de prosa me dispersa palavras. Não me dispõe a juntá-las no papel, descrevendo-as, dissertando-as ou dando vida a personagens em criações narrativas. Escrever é um ato de coragem. Um fato que expõe um ato ao risco. À ponte da paz, cuja travessia também conduz à guerra de palavras. Inútil e invencível. Não sei, então, porque, se preguiçoso, escrevo. Sei. Porque não sou, estou. E assim me arrisco com os dedos, ou melhor, com os riscos da prosa.
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1- A Mosca Azul - poema de Machado de Assis.
2 - Lc 6, 45
Ando com preguiça de escrever em prosa. Mas não sinto nessa eventual indolência o fastio de quem perdeu o gosto por um sabor de que está farto. Eu sinto fome de palavras como de alpiste o canário ou o lactente quer o peito sugar. Tenho sede de vocábulo como na planta a raiz precisa de água, o radical da palavra de que nasce a frase, como da semente vigoram folhas verdes.
A minha indolência não é indolor. Também não é “sensível à flor da pele”, como a da poesia. É uma apatia que, absurdamente, tenta explicar um querer sem vontade. Talvez isto dê sentido a este paradoxo ou à preguiça que sinto. Não é a letargia da ociosidade inerte que, aliás, é tudo a mesma coisa: nada. Minha preguiça de prosa se move; só não age, isto é, não produz. É uma causa sem efeito. Ainda bem. Mas, querendo ou não, dedilho (ou digito) pensamentos, riscando palavras. Soltas, elas vêm como folhas esparsas e se juntam num perfil sintático ou se desmembram. Às vezes, uma palavra me vem num zumbido aos ouvidos e eu a espanto como um mosquito inoportuno. Outras vezes, em minhas mãos, ponho-me a investigá-la como o poleá a mosca azul.*(1)
Quando não oral, prosear é uma forma de escrever. Escrever não é o (im) puro ato instintivo, como o sexual, embora este também se mova pela cabeça, ou melhor, pelo pensamento. É uma relação igualmente precedida de vontade, imaginação, criatividade, disposição, energia e tesão. Eu disse tesão? Vá lá. É um ato a se tornar um hábito, que, partindo das ideias do escritor, transita-lhe alma e corpo até escapar-lhe da mão ao papel. A mão do escritor, como o pincel do pintor, obedece-lhe a vontade num impulso criativo, dando cor às imagens da imaginação. Cada palavra, com sonoridade, luz e cor, também produz emoções e reações. Tem sangue e lágrimas, dá vida à visão do pensamento grafando ideias. Expressão da língua, dela a palavra é tradução. Instrumento de paz ou veneno mortífero, a palavra procede da língua, ou melhor, da boca que fala “do que está cheio o coração”.*(2)
Estou a escrever com preguiça de prosa. Negligencio ideias, mas "não jogo conversa fora”. Não escrevo nem falo “miolo de pote”. A preguiça de prosa me dispersa palavras. Não me dispõe a juntá-las no papel, descrevendo-as, dissertando-as ou dando vida a personagens em criações narrativas. Escrever é um ato de coragem. Um fato que expõe um ato ao risco. À ponte da paz, cuja travessia também conduz à guerra de palavras. Inútil e invencível. Não sei, então, porque, se preguiçoso, escrevo. Sei. Porque não sou, estou. E assim me arrisco com os dedos, ou melhor, com os riscos da prosa.
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1- A Mosca Azul - poema de Machado de Assis.
2 - Lc 6, 45