DEUS É PAI!

Entrei no ônibus 5810 (Célvia/BH) às 07h 25min., como de rotina, para ir trabalhar. Como de costume, ônibus lotado e eu teria que ir em pé. Eu não tinha a idade, nem cabelos brancos suficientes para que alguém me oferece o seu lugar. Ainda que tivesse, não poderia acalentar muitas esperanças, visto que pessoas idosas, gestantes e mulheres com crianças no colo têm se constituído nos melhores soníferos disponíveis no mercado: basta que qualquer um deles entre num ônibus lotado, para que os jovens que estão assentados caiam num sono imediato e profundo.

Foi então que eu os avistei: Sônia e Toninho, amigos de infância, casados há pelo menos 28 anos – se não me falha a memória. Ambos sorriram e acenaram para mim, à distância, pois, com o corredor lotado, não tive como aproximar deles; fiquei a uma distância de três fileiras de poltronas. Respondi ao cumprimento com igual sorriso e aceno de mão. E porque estava em pé e não tinha o que fazer, passei a observá-los. Apesar de casados; apesar de estarem assentados lado a lado, eles se comportavam como dois estranhos: não se olhavam, não se falavam, não estavam de mãos dadas... ela olhava a paisagem que passava vertiginosamente pela janela; ele parecia contemplar o vazio.

Pus-me então a pensar nos efeitos do tempo sobre os relacionamentos afetivos: tempo que consome o fogo ardente da paixão; tempo que apaga a brasa que teima em arder sob as cinzas fumegantes; tempo que abraça o vento e o convida a soprar as cinzas... tempo que confere rusticidade às poucas palavras articuladas roboticamente; que afeta a memória e a faz esquecer a importância do elogio, to toque sutil, do olhar cúmplice; tempo que cega os olhos até mesmo para a beleza invisível do coração e da alma; tempo que faz as palavras hibernarem no interior de um coração que pulsa fraco, desencantado...

E porque não havia o que falar, nem o que olhar; muito menos, o que tocar, a minha amiga Sônia fechou os olhos... (Para o amor? Para os sonhos desfeitos? Para a vida?) Ele coçou a barba – que lhe conferia um ar de pessoa suja e descuidada – e voltou a contemplar o vazio. Passado alguns minutos, ele deu uma leve cotovelada no braço esquerdo dela, que abriu os olhos, demonstrando surpresa e espanto.

- Será que ela vai conseguir? – perguntou, de forma mecânica.

(Conseguir o que, meu Deus? Eu me pus a pensar. Tinha pelo menos quinze minutos que eles não trocavam sequer uma palavra. A pergunta, portanto, não fazia nenhum sentido. Não havia um diálogo precedente. Ou havia? Se havia, quando e onde havia começado? Há quanto tempo?)

- Vai! Deus é Pai! – ela respondeu e fechou os olhos novamente, dando fim ao micro-diálogo.

Poucos instantes depois, ele a cutucou novamente e ela abriu preguiçosamente os olhos; ele nada disse, apenas esticou o queixo apontando para fora e eu entendi que ele estava mostrando para ela que era hora de descer. Ele se levantou e se encaminhou para a porta de desembarque; ela o seguiu, caminhando pesadamente pelo corredor já um pouco mais livre, visto que alguns passageiros já haviam descido. Não olharam para trás; não se lembraram de mim. Ele desceu os degraus da escada antes dela e eu pensei que era para, gentilmente, oferecer-lhe apoio na hora em que ela fosse descer. Enganei! Ele desceu sem sequer olhar para trás; sem se dar conta da dificuldade dela em descer os altos degraus. Desceu e saiu caminhando pela calçada, seguido por ela a uma pequena distância... Ele adiante; ela, atrás. Dois ilustres desconhecidos... exatamente como se comporta a minoria dos casais com menos de 10 anos de casamento; ... exatamente como se comporta a maioria dos casais com mais de 10 e menos de 20 anos de casamento; ... exatamente como se comporta a totalidade dos casais com mais de 20 anos de casamento.

O ônibus arrancou e dentro dele, eu os observei até que desapareceram da minha linha de visão. Soltei um suspiro e pensei: “Será que esse casamento vai em frente?” Neste instante, uma voz – Seria a voz da submissão? Do conformismo? Do cansaço da luta inútil? Da anulação do SER? Da FÉ, incapaz de remover montanhas? – soprou em meus ouvidos, a resposta:

“ – Vai! Deus é Pai!”

Alexandre Brito – 21/01/2014 – 11:19

Alexandre Brito
Enviado por Alexandre Brito em 21/01/2014
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