UM EXEMPLO INADEQUADO

UM EXEMPLO INADEQUADO

Deve-se tomar muito cuidado em chamar alguém hoje em dia de “vagabundo” pois seu significado é muito vasto. Ficaríamos horas (ou muito mais que isso) lembrando de tal fulano ou de sicrano que se encaixaria perfeitamente em vários quesitos desta palavra.

Porém, existem algumas pessoas que quando classificadas na categoria de vagabundos, empobrecem a palavra, no sentido literal. Eu posso ir mais longe e dizer que elas deixam a palavra no chinelo mesmo. Conheci um certo casal que foram feitos um para o outro. E meu relato pode fazer com que você entenda perfeitamente o que quero dizer.

Mariane e Valdomiro se conheceram num baile de domingo, aqueles bem típicos de cidade do interior que depois das dezoito horas não se tem nada para fazer a não ser freqüentar bailes de terceira idade (mas que geralmente recebem pessoas de todas as faixas etárias). A primeira, até que trabalhou alguns meses de balconista e diarista. Já o outro, aprendeu o ofício de radialista e este exerceu por muitos anos até que resolveu parar e se aventurar em apresentar concursos de violeiros, além de dizer que sabia muito bem produzir festas deste tipo e conseguir patrocinadores para custear tais eventos. Só que ele era um alcoólatra enrustido (ele mesmo dizia que não era e você nem imagina a discussão que isso gerava quando era confrontado sobre o assunto) e diante de tais fatos quando estes dois se conheceram aí seria o início de uma jornada aventureira e mais que vagabunda.

Valdomiro sempre tinha em seu poder uma garrafa de cachaça e com seu chapéu preto, camisa xadrez azul e calça jeans desbotada, calçando uma bota preta e bem velha, sempre fazia trocas e revendas de produtos que ele mesmo ganhava ou golpeava de algum inocente. Esses pequenos golpes lhe garantiam a cachaça do próximo dia, quando este, não ia bem em seu negócio de produtor musical. Também saqueava como um pirata, fazendas, sítios, galinhas de vizinhos, gatos e animais de estimação. Quando dizia estar com sorte, roubou até porcos e patos de alguns fazendeiros que quando descobriram tal feito, foram atrás dele para cobrar seus direitos. Pelo visto fazendeiros ainda gostavam de fazer justiça com as próprias mãos. Com uma esperteza fascinante conseguiu arrumar emprego de caseiro numa fazenda, mas ele próprio a roubava, trazendo nos fins de semana feijão, laranja, milho e café para sua casa. Tamanha foi sua audácia que seus feitos se estenderam a todo sul de Minas e leste paulista.

Mariane por sua vez apesar de morar numa cidade do interior de São Paulo, morou muitos anos na capital e sua fama nunca foi das melhores. Quando podia vivia afastada por doença e ficava poucos meses trabalhando com registro nas lojas que tivera sorte de trabalhar. Quando veio para o interior só conseguiu emprego de diarista e acompanhante de idosos, claro que ela também golpeava seus patrões, mas usando sua influência. Também bebia, mas sempre arrumava patroas que também gostava de uma boa cerveja e aí para ela era muito cômodo, pois limpava a casa das patroas bebendo e fazendo arruaça e no final do expediente sempre levava embora alimentos, roupas, sapatos e tudo o mais que ela conseguia guardar em sua sacola misteriosa. Sempre estava de calça de malha e blusas que disfarçavam suas formas mais avantajadas e carregava uma pequena bolsinha verde entre os seios, que lhe servia para guardar o dinheiro que conseguia ganhar, ou sabia-se lá qual era a fonte de onde obtinha. Pra você ter uma ideia, certa vez estando de visita numa casa onde não conhecia os donos, Mariane encontrou moedas por cima da mesa da cozinha e da mesinha de centro da sala, feliz e satisfeita pegou as moedas e dizendo mais tarde para uma de suas amigas, relatou que havia encontrado-as e que “achado não era roubado”, cá entre nós se fosse fácil dessa forma, muitas pessoas estariam com o fim de semana garantido ao visitar casa de amigos e parentes que vivem deixando dinheiro em fruteiras, armários, geladeiras e jogados em qualquer lugar.

Dessa forma, quando ambos começaram a namorar porque ela dissera que “havia encontrado sua alma gêmea” estava então armada a arapuca. Pois juntos golpeavam sem nenhuma vergonha, e mesmo que trabalhando em algum lugar sempre davam um jeito de saírem na vantagem levando utensílios e eletrodomésticos que conseguiam ao persuadir seus patrões. Na maioria das vezes os produtos estavam com defeito ou encostados mediante a compra de um novo que o empregador substituía, mas mesmo assim Valdomiro e Mariane conseguiam enviar ao conserto (sem pagar pelo serviço, pois davam o calote) e revendiam ou faziam os famosos “rolos”.

Quando golpear os outros passou a ser monótono, começaram a golpear entre si. Valdomiro ficou vivendo à custa de Mariane que conseguiu um emprego de cuidadora de idoso. Nos fins de semana quando estavam juntos freqüentavam bares e bailes, e na primeira oportunidade Mariane conseguia persuadir os homens com sua ótima abordagem para lhe darem dinheiro sem exigir nada em troca. Quase sempre dizia que era emprestado e que pagaria, quando não já dizia que tinha aluguel e conta de luz para pagar e que quando pudesse acertaria o débito. Ela também se tornou perita em descobrir quais nomes iriam sair nas rifas e tratava de comprá-los antes usando nome de compradores que nunca apareciam, dessa forma garantia vários prêmios que quase sempre eram carnes, frango e porções que ela utilizaria em casa durante a semana. Enquanto isso ao mesmo tempo Valdomiro garantia o que iria beber na semana seguinte, pois aproveitava o momento para conseguir dinheiro com os violeiros e os proprietários do estabelecimento onde ele e Mariane estavam. Com a fama de divertida e simpática, logo Mariane foi convidada a trabalhar nos fins de semana com um proprietário onde Valdomiro também se tornou o narrador oficial do baile. Com seu copo de cachaça sempre por perto, aproveitava e anunciava ao microfone que uma rifa de um delicioso pernil estava sendo ofertado por Mariane, que feliz fazia a venda.

Durante muitos meses isso aconteceu e quando Mariane não recebia sua parte combinada em dinheiro com o proprietário do baile, esta levava a diferença em bebidas, cigarros e outros alimentos. E como quase sempre isso ocorria, esperta já dizia “já que combinamos um valor e você me pagou faltando, eu vou completar em produtos”.

Com os esforços por trabalhar num local onde carregava engradados de bebidas e fazia limpeza em geral, Mariane acabou contraindo uma hérnia na região abdominal. Certo dia numa roda entre amigos disse “hoje eu não trabalho por causa da hérnia” questionada pelos próprios amigos do porque não trabalhar antes da doença completou: “antes eram por outros motivos”.

Fiquei sabendo que ambos após quase três anos juntos, se separaram. Valdomiro continua sem emprego e vivendo às custas de uma nova namorada que arrumou. Quanto a Mariane, ela fez cirurgia para corrigir o problema da hérnia e ainda dá pequenos golpes quando pode, evitando ao máximo ter que trabalhar.

Eles nunca foram presos nem pegos em flagrante, mesmo porque ela diria que as pessoas lhe dão as coisas por vontade própria. E quando não lhe dão algo, ela pressente que aquilo não serviria mais e por isso o leva embora para casa. Diante de todas essas coisas que aconteceram e de tudo o que ela viveu e provavelmente ainda vive, diria que seria incorreto chamá-los de vagabundos. Eles são exemplos de vida inadequados logicamente, mas com uma pitada de bom humor e audácia estampados no rosto de ambos que fizeram muitas pessoas acreditarem em suas personalidades santas e ingênuas. Lembrando de muitos outros exemplos que aparecem na mídia por aí. Neste caso, são dois anônimos que nunca terão seus rostos estampados numa revista ou folha de jornal, pois como dizia Mariane “tem gente que dá problema, eu sou ele em pessoa e por isso é fácil se livrar dos problemas quando se tem controle sobre eles”.