O menino do rio Tingüi


Inútil lutar contra o paradoxo. Sabemos que nenhum deles tem uma explicação cabalmente satisfatória, mas, de alguma maneira, todos se ajustam a um certo grau de percepção da realidade. Esta é que sempre nos escapa em sua inteireza; daí a oportunidade e o fascínio do paradoxo, uma janela para a compreensão ou, pelo menos, a suspeita das coisas. E muitas vezes é a melhor leitura que se pode fazer dos casos. Quando o reacionário Chesterton afirma com genialidade: “Louco é o homem que perdeu tudo exceto a razão”, sorrimos com simpatia da frase, ao mesmo tempo que o curioso jogo de idéias ali contido parece convocar todas as forças da nossa intuição. 

Baixando um pouco a bola, não deixa de ser paradoxal, por exemplo, que a única pessoa em Marechal Hermes que me chama pelo nome de batismo seja um cara mentalmente confuso, ou pirado, se dermos crédito aos seus vizinhos de rua — “Henrique ficou maluco”, comentam à boca escancarada, impiedosa, quando interrogados a respeito. 

Ninguém mais me trata de Luiz no bairro. Considerando que nunca fomos da mesma patota nos velhos tempos e que eu tenha dez anos a mais do que ele, não faço idéia de como aprendeu e guardou o nome do irascível zagueiro cegueta que batia peladas num campinho colado ao rio Tingüi, perto de onde Henrique morava e ainda mora, com duas irmãs, uma delas não menos problemática. Se assistia àquelas partidas de futebol do muro de sua casa, muito novo para ser aceito entre os marmanjos, o normal seria que só conhecesse os meus apelidos. Ou que fizesse como o pai dele, famoso passarinheiro do lugar, já falecido, que me chamava de Russo. 

Pois uma noite dessas, ao sair da missa, Henrique descobriu-me na porta do Fred’s Burger. Não nos víamos para mais de vinte anos. Postou-se hieraticamente diante de mim, olhos vidrados e perdidos, sorriu com brandura e disse com uma voz cavernosa e indolente: “Luiz!...” E sem transição passou a contar-me, de uma maneira que botava o monólogo de Molly Bloom no bolso, toda uma história de incompreensões da família para com ele, muita internação psiquiátrica, muito remédio, muita briga dentro de casa, muita fuga noturna para correr atrás do grande barato, muita gritaria alucinada à margem do pobre Tingüi, acordando os vizinhos. Mil coisas dessa natureza, enfim, mas tudo em frases desconexas, cosendo e descosendo os assuntos, e que eu só entendia pescando aqui e ali algumas palavras-chave. Querem ver? Em meio ao relato de uma discussão sua com o médico, que não queria receitar-lhe uma droga das mais controladas, conseguiu enfiar temas e palavras como Obina, o último jogo do vôlei masculino, o profeta Isaías, uma cena da novela das oito, as idas e vindas do Zé Peru (um vizinho dele), uma invectiva contra os caça-níqueis e até as empadas de chef Alfredo, para não irmos mais longe. 

Eu mesmo quase não disse palavra, meio à deriva naquela contação dadá-surrealista. Limitava-me a ouvi-lo, pois não é difícil imaginar o que uma palavra solta, caindo mal, pode ocasionar no psiquismo de pessoas assim. Refreava sobretudo o desejo de fazer perguntas a fim de esclarecer este ou aquele ponto, pois malucos (olha eu embarcando torpemente no papo furado dos outros) não gostam de perguntas. 

Mas o importante é que Henrique se sentia feliz com minha atenção, interrompendo-se de tempos em tempos para indagar-me: “O Luiz não usava óculos?” Antes que lhe falasse dos meus telescópios de contato, ele simplesmente fazia um muxoxo de indiferença e enveredava por novos discursos. Tomou um refrigerante comigo, comeu uma coxa de galinha e fumou um dos meus cigarros; de cara feia, por sinal, pois achou-o muito fraco. 

Antes de partir, cortou-me o coração. Falou-me da ex-noiva, episódio quase arqueológico em sua vida, e da oposição que lhe faziam os pais da moça, porque ele não trabalhava. Sobre isso, concluiu mais ou menos assim: “Aprendi com meu pai a fazer gaiolas de passarinhos para vender e poder casar-me com ela, mas não adiantou.” 


[27.1.2007]