Página de literatura russa

Uma página de literatura russa. Era aquilo que lia encostado à parede de uma cama que não era a sua. Também era assim que classificava a sua própria vida até então. Mas olhando para ele ninguém diria que estivesse passando por algum drama pessoal. Isto é, sabiam que estava em situação difícil, e foi precisamente por isso que ofereceram um quarto para ele. Mas não imaginariam que suas preocupações se estendessem para além das dificuldades financeiras. E mesmo que deixasse uma carta é provável que não atinassem exatamente com os motivos para o gesto fatal e irremediável que cogitava cometer contra si.

Esse pensamento foi esquecido por um momento, logo que os acordes de “Fado Tropical” lhe chegaram aos ouvidos. Era o colega a quem devia o quarto que agora ensaiava ao violão a música de Chico Buarque e não deixava de se empolgar durante a execução. Observou o amigo em silêncio e teve inveja do cabelo comprido e do despojamento com que cantava. A bem da verdade, os dois tinham muito pouco em comum. Apenas certa semelhança na maneira meio socialista de enxergar o mundo, coisa que perceberam durante uma faculdade que nenhum dos dois chegou a concluir. E um pouco do gosto musical. Ao contrário do amigo, ele não se interessava pela erva consumida nos fundos da casa por um pequeno grupinho sempre que os país dele saiam. “Meu delírio é experiência com coisas reais”, citava. E se deixava ficar sozinho dentro de casa, fechada por causa da fumaça, enquanto lia páginas de literatura russa.

E não sei exatamente se foi por tanto Górki e Dostoiévski acumulado, pela sua impotência diante da dor, ou simplesmente pelo poema que o Ruy Guerra declama na música do Chico e o amigo repetia ao som do violão, mas o fato é que tudo desencadeou uma catarse, e ele de repente se viu chorando convulsivamente. O amigo aproximou-se, aflito, e perguntou o que havia. Em meio a frases inteligíveis, conseguiu ouvir: “Sabe, no fundo eu sou um sentimental”.