O catador de latinhas, Manuel, Pasárgada e o Brasil
Um simples catador de latinhas, o melhor cliente do ferro velho do seu João. Ele era emocionalmente controlado e compensava a sua timidez com os gritos e assovios para chamar atenção.
Esboçava, diante de seus pés descalços e suas mãos cansadas, um sorriso tão vasto quanto o caminho que percorreu até chegar ali. Conseguia alguns quilos de alumínio perdidos nas ruas da cidade, era a sua fonte de renda para sustentar a família: ele e Manuel (um cãozinho de raça indefinida). Mas assim não podia melhorar, o mundo era único, as contas não existiam, os problemas? Que problemas? E um novo rumo a seguir.
Antes mesmo de o sol acordar, ele já estava em pé, Manuel se espreguiçava e lá se iam os dois, saindo de sua humilde e aconchegante obra inacabada de um sujeito qualquer, passando em frente às mansões e lutando pela vida.
Num suspiro momentâneo as lembranças de sua história com os incontáveis obstáculos, a esperança de seguir em frente, buscando um dia, quem sabe, um café da manhã. Ou até alguns beijos e abraços, palavras de conforto e carinho, com tantas bajulações e admiráveis palavras irreconhecíveis.
Ele tinha 30, talvez 40 anos, pelo menos metade destes feitos com indignações e busca pelo conhecimento, sem nenhum propósito. Lembrou de sua infância na cidade grande, não encontrou seu pai, viu sua mãe virar estrela e foi apresentado a rua. Mesmo não querendo passou longos e tolerantes anos debaixo de um viaduto. Conheceu quem não devia, foi oferecido ao inconsequente, mas escolheu a vida e admirou lindos e tristes contos de amor.
O tempo passou e na cidade grande o medo era a sua sombra, procurava em seus sonhos buscar o infinito, assim aprendeu a ler e a conhecer onde pisava. Nada era o planejado, até um dia tomar a decisão de seguir outros caminhos.
Descobriu, num poema de Manuel Bandeira, onde estava a felicidade, decidiu ir procurar a tal “Pasárgada”, ser amigo do rei, receber mimos de infância e descobrir outra civilização. Na rodoviária esse destino ele não encontrou. Logo descobriu que esse paraíso estava apenas nos seus desejos, inventados por Bandeira.
Quando voltou à sua casa, o viaduto movimentado e pintado de terra, não viu seus vizinhos, dormiu sem perceber e ao acordar ouviu no radinho de pilha que o “sopão” oferecido pelas entidades assistenciais deu lugar a barbárie e ao vandalismo de alguns moicanos burgueses.
Assustado foi embora e num bairro de classe média descobriu um lugar para se esconder, conheceu o seu fiel companheiro, que apenas o olhava e deu a ele o nome de Manuel, homenagem póstuma ao inventor da felicidade. Nas ruas gritava para as casas ouvirem, “Olha o catador de latinhas”, e assim com o seu cachorro era conhecido em seu bairro nobre.
Depois de pensar na sua infância e se cansar com os passos que percorreu até chegar ali, ele se virou para o presente. No momento de descanso, depois de juntar suas moedas fez valer o esforço. Comprou dois pães com manteiga, para Manuel também, abriu o jornal que estava no balcão da padaria e com a sua limitação particular leu página por página.
Quando menos esperava e na última migalha do pedaço de pão, encontrou o que sempre quis. Uma mansão, com mordomos, camareiras, mimos e até banheiros. Continuou lendo ansioso, tentando saber como chegar ao caminho sonhado. Descobriu que tal político era o senhor de todas aquelas regalias, na matéria explicava como o governante chegou lá: Alguns desvios de verbas públicas, os impostos abusivos, algumas fazendas, contas num país distante... Era Pasárgada, do Brasil.
Fechou o jornal, se sentiu no mínimo injustiçado em saber que ele, com suas latinhas, foi um dos compradores daquela morada, que daria para acomodar com sobras ele, Manuel e seus vizinhos de viaduto.
Seu nome? Não sei. Foi embora antes mesmo de me contar.
Segurando suas sacolas, com seu amigo Manuel do lado, foi ao encontro da sua realidade. Ainda sonhando com um chuveiro, um café da manhã e quem sabe encontrar a porta para Pasárgada. Lá seria amigo do rei...
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