Felipe quase perdeu o ônibus
A vida é cheia de incertezas!
Pronto, você não precisará ler mais nada a seguir, todo o texto baseia-se nessa sentença por mais clichê e óbvia que pareça. Mas se você quer insistir, achando que pagou pelo jornal ou pela internet e tem o direito de desfrutar de todo o conteúdo, fique a vontade.
Qual o controle que temos da vida? Por que nos preocupamos tanto com os planos e nos frustramos quando eles não são executados à risca? Enquanto eu digito essas linhas, tanta coisa pode acontecer que minha ideia original de você recebê-las e me acompanhar nessas divagações pode não vingar. Posso esquecer-me de salvar e o computador sofrer uma pane, ficar sem internet na cidade por uma semana ou ter um problema na gráfica. Ainda desistir de enviar ou o editor simplesmente recusar-se a publicar são também possibilidades. Mas se você está lendo esta crônica, de alguma maneira meu plano original funcionou.
Acredito que nossas vidas também dependam de certo grau de entropia – usando um pouco dos conceitos da teoria da informação. Na verdade somos guiados mais pelas incertezas que pela exatidão. Não que os planos sejam impotentes, mas apenas nos geram expectativas. E ao contrário do que muita gente prega por aí – como eu mesmo no passado – é de vital importância manter expectativas, sobre tudo. Não temos o controle total da vida e, segundo minha amiga Helen, isso é bom. O controle excessivo impede que o melhor da vida aconteça. Ele escraviza; as surpresas da vida surgem no vento da liberdade.
Bonito isso o que ela disse. Mais bonito ainda porque acho verdadeiro e libertador. Quando tudo sai como planejado e não estamos sujeitos a surpresas caímos numa rotina chata, previsibilidade de uma falsa zona de controle. As vezes que organizei a noitada com os amigos, o fim de semana em Cabo Frio, carnaval em Salvador, e não ocorria como eu havia pensando; talvez tenham sido as melhores, superando aquela previsibilidade boba. Um trem que avariou, o último ônibus da noite partindo mais cedo, as portas fechadas da estação do metrô, fez-me agir, sofrer uma digressão no caminho reto, no espaço-tempo certinho. Assumo as rédeas da vida por algum momento. É como se fôssemos um GPS e o motorista seguiu reto ao invés de virar à esquerda. Necessitamos recalcular a rota imediatamente, revendo todas as possibilidades, retraçando o destino, medindo distâncias e partindo para o famoso plano B. Quem sabe a vida não seja um doce e belo plano B, tirando-nos da medrosa voz passiva analítica (ou pior, passiva sintética, reflexiva...) e dando-nos uma voz ativa de bandeja. Vai, recalcula a rota.
Isso me faz lembrar o Felipe. Primeira vez que viajaria tão longe (ele a namorada vinham me ver) e esqueceu o RG no bolso de outra calça. Já estava no meio do longo caminho para a rodoviária, isso uma quinta-feira pré-feriadão. Das opções prováveis, como seguir em frente e pedir que alguém levasse o documento na rodoviária, resolveu voltar tudo, sob o risco de atrasar-se e não conseguir embarcar. Não preciso dizer como a namorada do Felipe ficou quando ele comunicou essa decisão. Só sei que ele pagou a um desconhecido numa moto (disse-me ele quer era nova, mas sofreu dois furos quase chegando), pegou um baita engarrafamento e quase não deu tempo de chegar. Mas chegou. E hoje ele me conta essa história, com mais riqueza de detalhes e graça na versão dele. Conta quanto pagou ao motociclista e o medo que ambos tiveram um do outro e que pisou na plataforma de embarque faltando três minutos, verdade! Foi somente o tempo de preencher a passagem e desculpar-se com a namorada. Grande Felipe e suas entropias. Se não fossem elas (e o RG perdido) hoje não tivéssemos história para contar, e eu, arriscando-me a não ter a companhia do amigo e a namorada, passaria mais tempo tentando entender os porquês da vida enquanto me entupiria de rosquinhas de pinga. É, eu disse que a vida é cheia de incertezas. E viva isso...