HOSPITAL DO MEDO

Ontem eu sonhei que estava no inferno. Não vou descrever o cenário, que todos já conhecem. Vou direto ao ponto, que é este: ali, bem na minha frente, cinco demônios discutiam para ver quem levaria ao seu senhor uma demanda especial que lhes havia sido entregue naquele dia: a da criação de uma nova câmara infernal. Pelo que eu pude perceber, Lúcifer não gostava de criar novas câmaras, achava que as que já existiam eram suficientes; mas às vezes os tipos e níveis de maldade na superfície variavam tanto, que os demônios observadores da crosta (conhecidos como capetas) solicitavam a criação de novos departamentos ou câmaras de suplício, quase sempre com punições mais severas e terríveis do que as já existentes.

No meu sonho, a demanda entregue a Lúcifer era para se criar uma câmara especial destinada aos responsáveis pelo caos na saúde pública brasileira – para aqueles que, à custa do desespero, do sofrimento e do sangue de milhares de brasileiros pobres, acumulam patrimônios imensos, fortunas fabulosas, passando por cima da lei, da ética, da moral e de qualquer sentimento humanitário, cristão ou não. Estão ali pelo dinheiro, mais nada.

O argumento era forte:

“...no Brasil, milhares de seres humanos pobres são tratados como cães de rua por causa disso, senhor, e desses, muitos morrem todos os dias nos corredores dos hospitais, ou em suas casas ou barracos, não por fatalidade, mas por ambição e maldade de quem deveria zelar pela qualidade do atendimento...” – assim argumentava o demônio mensageiro com Lúcifer, que, desconfiado, soltava pelas narinas uma fumaça escura e fedida, prenúncio do que, para todos os demônios ali reunidos, seria uma terrível explosão de fúria.

Mas o mensageiro tinha ainda uma carta escondida na manga: o relatório de um capeta observador, instalado na cidade de São Joanico de Minas, sobre a situação do hospital local, que era simplesmente deplorável.

Ao ler esse relatório, Lúcifer se resignou. Fechou os olhos (e todos ali presentes juraram depois ter visto uma lágrima brotar de seu olho esquerdo e, numa fração de segundo, se evaporar no primeiro contato com seu rosto vermelho de fogo), fez desaparecer a fumaça que saía de suas narinas e, respirando fundo, abriu de novo os olhos e disse:

“Declaro criada uma nova câmara no inferno, destinada a alojar eternamente, em sofrimento atroz grau oito, os espíritos desses nossos irmãos do Brasil, que vêm trabalhando arduamente para honrar meu nome nos hospitais e postos de saúde desse país marcado por tanta miséria e padecimento. Que esses queridos infelizes, sobretudo os bandidos desumanos do hospital de São Joanico, sejam mal vindos e mal tratados para sempre nessa nova câmara. Que ela seja equipada com novos caldeirões, novos cortadores e prensas de testículos, novas agulhas para espetar mamilos e costurar pálpebras, novos dilatadores de ânus e novos ferrões e ferros de marcar gado. E que sejam chamados para treinar e coordenar a equipe de demônios encarregada dessa nova câmara os mais terríveis torturadores do inferno, oriundos da Inquisição espanhola, da Alemanha nazista, da União Soviética de Stalin, do Iraque de Saddam, da CIA e da ditadura militar brasileira – quero os mais meticulosos, os mais cheios de ódio acumulado, os mais impiedosos das profundezas mais sombrias: os piores dos piores...”.

Acordei assustado, quase sem ar, e liguei para a minha filha, que é médica em São Joanico de Minas. Ela me tranquilizou, dizendo que não faz parte da gangue de bandidos que suga o sangue e assiste impassível ao sofrimento da população pobre da região, e que, se existir inferno, não são todos os profissionais da saúde e burocratas da cidade que para lá serão encaminhados, mas uma minoria que, no entanto, por ser muito rica, poderosa e cega de ambição, tem feito estragos realmente terríveis.

Desliguei o telefone, voltei para a cama, mas não consegui dormir.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 12/01/2014
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