A primeira família

Houve um tempo que a gente olhava ao redor e tudo o que se via era terra nossa. Era natural, porque fomos a primeira família que chegou à região. Vieram os avós e toda uma carrada de filhos e netos. Por que vieram é que a gente não sabe muito bem, passado tanto tempo. Mas deviam ser os mesmos motivos que fazem as pessoas se mudar até hoje. Aos poucos foi se formando um povoado e, como não havia outras pessoas na região, ele ficou conhecido pelo sobrenome da nossa família, que é como a gente chama até hoje.

Mas a gente não era dessas famílias importantes, com passado tradicional, direito a brasão, posse de escravos e patentes no Exército. Éramos meio mulatos, porque lá atrás a gente teve uma avó índia, escravizada mesmo. A gente era lavrador, plantava milho e feijão para o sustento. Mas havia também criação de gado e alguns fizeram parte do movimento tropeiro. Um dos nossos avôs tinha um armazém de secos e molhados – provavelmente mais molhados do que secos. Parece que foi o primeiro bar na região. Esse devia ter certo prestígio também, tanto que até hoje dizem que foi ele o fundador do povoado.

O problema naquele tempo eram as estradas, bastante precárias. Foi a gente que construiu a primeira ponte no lugar. E a nossa família era grande e morava nos dois lados do rio. Às vezes a gente ia pelo rio mesmo visitar os parentes. Hoje tem asfalto e tudo, mas a verdade é que a gente já não tem quem visitar. Todos foram se espalhando e depois de algumas gerações éramos todos parentes distantes. E o pior foi ter que vender as terras. Muito imposto pra pagar. E muito espertinho se aproveitando da nossa ingenuidade. Tua avó perdeu muita terra assim, depois que ficou viúva. Hoje em dia só sobrou um terreninho pra gente, onde temos uma casa com piso de madeira e uma garagem que não tem carro. O povoado só tem importância nas eleições, e nem sinal de celular chega aqui.

Mas ainda causa emoção ler o nome da nossa família nas placas de trânsito na rodovia.

milkau
Enviado por milkau em 12/01/2014
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