Dona da Razão

Adoro observar as pessoas, desde sempre. Adoro ouvir alguns diálogos e criar cenários. Às vezes erro feio mas muitas vezes me sinto um ser com superpoderes de adivinhação. Já casei gente, já separei, já adotei filhos, já criei amantes, tudo resultado das minhas criativas observações. Essa semana tive mais uma oportunidade de exercitar esse meu dom divino.

Estava no salão de beleza, fazendo minhas unhas, me sentindo grata por esse momento só meu, feliz por ter deixado de ir para minha academia e mais ainda por ter dado uma trégua às minhas sofridas unhas cansadas de serem roídas... quando ao meu lado começou a rolar uma situação com outra cliente.

Primeiro chegou o Sr. Manobrista que, de maneira polida, se dirigiu à cliente, que estava conversando abobrinhas no celular há um tempão, e disse: “Senhora, com sua licença, é porque a Sra. Dona da Loja ao Lado está querendo fechar o estabelecimento e o seu carro está estacionado de uma forma que está impedindo que ela coloque a corrente e acione o alarme”.

Nesta hora, agucei meu ouvido, fingi que continuava lendo a revista Caras, minha leitura predileta nos salões, e observei que a cliente, sem nem deixar de falar no celular, gesticulou e disse que não iria tirar o carro até que terminasse de fazer as unhas, alegando que a rua era pública. AHHH! Olhei no espelho, meus olhos já enormes, duplicaram de tamanho. Choque!!! O Sr. Manobrista até se colocou à disposição para afastar o carro, se ela assim quisesse. Mas ela simplesmente gesticulou que NÃO. Não? Como assim? Silêncio constrangedor e acusador. Ouvi quando a Sra. Manicure, segundos depois, disse educadamente: “Mas a senhora parou o carro no estacionamento da loja!” Palavras ao vento, afinal quem era aquela pobre mortal para dizer que a Sra. Dona da Razão estava errada?

Pronto! Já não conseguia mais fingir que estava interessada na separação da Grazi e do Cauã e nem me concentrar na massagem maravilhosa que meus sofridos pés estavam recebendo. Comecei a pensar, qual era a dificuldade dela levantar, se desculpar e corrigir um erro. Fiquei pensando como algumas pessoas tinham dificuldade de respeitar as outras, de serem educadas e de exercitar a generosidade.

Resolvi, como meu costume, fazer uma análise do perfil da criatura, nessas alturas, meu desafeto. Idade: por volta de 30 anos; Aparência: bonita, mas com cara de enjoada; Vestuário: básico, mas bem vestida, acompanhada de uma bolsa Louis Vitton (símbolo de riqueza e elegância?). Minhas conclusões, carregadas de preconceito: uma pessoa mimada, apegada a bens materiais, que teve oportunidade de estudar nos melhores colégios, porém faltou as aulas de cidadania. Definitivamente não a queria como minha amiga, nem no facebook.

Contudo, ainda tocada pelo espírito natalino, pensei: “Vou dar uma colher de chá para ela. Estou talvez sendo muito rigorosa. Como sempre. Na certa ela não está num dia bom, talvez um amor perdido, uma doença na família, uma conta no vermelho, depois de comprar a tão sonhada bolsa na mais sonhada ainda viagem a Miami...”

No instante em que tentava exercitar a bondade, entra uma moça, também com idade por volta de 30 anos, bonita e bem vestida como a Sra. Dona da Razão, só que com uma grande diferença. Chegou suavemente, sentou ao lado da minha “vilã” e, educadamente, falando baixo e de forma tranquila, explicou que precisava fechar a loja e solicitava sua compreensão. Deduzi que ela era a Sra. Dona da Loja ao Lado. Juro que torci para a outra ter um acesso de lucidez, pedir desculpas e se levantar imediatamente para resolver aquela situação desagradável que tinha criado. Mas ela, ao invés disso, superou o limite da prepotência e falta de educação. Repetiu que só iria tirar o carro quando terminasse de fazer as unhas, e que não iria dar as chaves para o Sr. Manobrista.

Do jeito que me espantei com a cara de pau da mal educada, me surpreendi também com a educação e a paciência da “vítima”. Voz baixa e tranquila. A elegância em pessoa. No meu íntimo, estava torcendo que ela chutasse a polidez e desse uma lição de moral para aquela patricinha metida a besta.

Numa autoanálise sobre a reação que teria numa situação dessas, concluí que tenho que exercitar a paciência e a tolerância, saber transformar a ansiedade em sabedoria, colocar em prática pequenas atitudes que me ajudem a levar uma vida mais desestressada e harmoniosa. E lembrei de alguns surtos que tive na minha vida e de como teria sido diferente se tivesse agido como a Sra. Dona da Loja ao Lado. Senti admiração por aquela desconhecida e decidi que tentaria ser elegante em situações de stress, igualzinho como ela foi. Minha escolha, definitivamente, era essa.

Passado o acontecido fiquei questionando a minha postura e a das outras pessoas que ficaram simplesmente assistindo o “espetáculo”, mesmo que intimamente indignadas. Será que deveríamos ter interferido de alguma forma na situação? Será????

Ah, o fim da história... A mal educada Sra. Dona da Razão só tirou o carro quando quis e eu substitui minha raiva pela esperança, pois a reação de indignação de todas nós que presenciamos o fato, mesmo que posterior à sua saída, na minha opinião, mostrou que pessoas com a “vilã” não representam a humanidade e que, para essas, a vida apresentará a conta e elas se tornarão mais humildes, nem que seja a duras penas.