Capítulo 14

Se você realmente quer alguma coisa, você tem que ir atrás do que deseja e não esperar que os resultados caiam sobre seu colo. É do ser humano querer cada vez mais que a praticidade e a comodidade façam o trabalho do seu cérebro. A iniciativa é uma qualidade crucial para quem quer subir na vida e Fernanda não pensava diferente, ela sempre foi de ir atrás de seus sonhos, o fracasso na viagem para o Kuwait foi uma grande decepção na sua vida, seus pais descobriram a passagem dias antes de sua viagem e impediram-na de ir, mas agora tinha a chance de fazer algo realmente incrível, virar uma lenda na faculdade.

Acordou cedo, desceu as escadas até a cozinha e ligou a cafeteira, o café estaria pronto em poucos minutos e ela aproveitou para subir de novo ao seu quarto e juntar seu material.

O dia na faculdade iria ser cansativo, como todos os outros no semestre vinham sendo. Ela estava no semestre em que se formaria e o seu trabalho de conclusão de curso estava matando-a, ela passava noites em claro e cada dia que se passava, ela estava mais próxima de apresentar e mais longe de terminar. “Perfeccionista demais”, dizia sua mãe sempre que ela fazia alguma coisa. Enquanto arrumava suas coisas, notou a tela do computador ligada e foi até ele para desligá-lo, então viu que era por causa do trabalho de conclusão, eram as páginas que escrevera ontem sobre como a ocupação norte americana no Iraque poderia gerar atentados terroristas no mundo.

O assunto era algo que ela sempre gostou de abordar: guerras, política e como a mídia poderia ajudar as pessoas que sofriam com tudo isso, mas o trabalho não a entusiasmava, não mais. Não tinha alma, ela não conhecia de perto o que estava escrevendo, soava como... falso. Olhou o livro na sua prateleira: “O livreiro de Cabul” de Asne Sierstad, ela pegou-o e olhou a orelha: “Campeão nas listas de mais vendidos do The New York Times, O Livreiro de Cabul foi considerado pela crítica um dos melhores livros de reportagem sobre a vida afegã depois da queda do Talibã. Depois de viver três meses em Cabul, com o livreiro Sultan Khan, a jornalista norueguesa Åsne Seierstad compôs este retrato das contradições extremas e da riqueza desse país.”

“Depois de viver três meses em Cabul”, pensou.

Guardou o livro na prateleira na ordem exata como se guardam nas livrarias: por sobrenome do autor. Fernanda ainda não acreditava que tinha que ir pra aula, pensou em levantar, mas virou sua atenção para o computador e lembrou que não havia salvado o arquivo ontem a noite, releu o que escreveu na noite anterior e meditou um pouco, sentiu um frio na barriga. “Isso está errado”, pensou.

A sua orientadora iria matá-la, mas ela fez o que sua intuição dizia: escrever sobre o homem que estava matando os militares, ela tinha que contar o que estava acontecendo, a mídia não iria honrar essas “pobres” pessoas. Deletou tudo que havia escrito e pensou sobre um título para o trabalho, mas não encontrou nenhum. Estava na hora de entrar em contato com os detetives de novo. Ela pegou o telefone celular.

- Não, garota, nem a pau – disse Marco para ela ao telefone – fique fora disso. Avise-me se ele ligar novamente.

- Ah detetive, por favor. Essa é minha grande chance, eu posso ser útil.

- De que forma? A gente já disse que a matéria vai ser sua quando capturarmos ele, agora é arriscado carregar você pra cima e pra baixo.

- Eu sei me cuidar detetive, por favor. – ela fez uma voz chorosa e uma carinha de coitada, mas ele não podia ver.

- Olha, se você trouxer alguma informação útil, a gente pensa no seu caso. Até lá, ficará de fora. E tenta conseguir a lista do CIGS pra mim, por favor. – ele desligou o telefone com um tchau tímido tentando não mostrar o mau-humor das noites que não dormia.

Caio olhou pro parceiro e fez um sinal de “não” com a cabeça.

- O que foi? – perguntou Marco – ela não vai conseguir nada!

- Duvido – disse ele – ela é esperta, e você vai ter que arrastar ela com a gente.

Marco olhou para o parceiro, mas não considerava que ela fosse conseguir, fizera aquilo pra ela parar de perturbá-los com a idéia maluca de acompanhar os dois na investigação.

Fernanda já tinha discado o número de sua amiga Eliza assim que acabou de falar com Marco, a amiga namorava um tenente da intendência do exército. Sabia que era arriscado, mas tinha que tentar, o namorado dela poderia conseguir alguns nomes para Fernanda e assim ela poderia participar das investigações com eles, só esperava que Marco não tivesse a cara de pau de descumprir com a palavra.

Assim que desligou o telefone abriu um sorriso, a amiga como sempre fora muito prestativa, disse que convenceria o namorado á qualquer custo, ainda mais, porque eles haviam brigado na noite anterior e ele estava fazendo de tudo para reconciliar com ela.

Fernanda sentiu um cheiro forte... “café queimando” pensou e desceu correndo as escadas para descobrir que o café já era.

- Tomo alguma coisa no caminho – disse pros seus cadernos enquanto saía de casa.

A universidade ficava á quinze minutos de ônibus de sua casa, ele fazia um caminho tortuoso até chegar, pois as ruas eram quase todas de mão única. Ela ligou o mp3 player, escolheu uma música da “Enya” para relaxar e pensar no que diria á sua instrutora. Afundou na sua imaginação e tudo que estava acontecendo: a mudança nos planos sobre o trabalho final, os assassinatos, o que diria á sua professora, a conversa com Eliza e com Marco e por fim, nos olhos do detetive, penetrantes, ela sempre reparava em olhos dos homens, era o espelho da alma, podia dizer muito sobre uma pessoa e suas intenções só pelo olhar.

Fernanda tomava chuva para chegar ao prédio onde teria aula, ela passara do ponto de descida e nem percebera, mas decidira não contar a sua orientadora nada até o momento. Um homem forte notou a garota sob o toró e ofereceu proteção em seu guarda-chuva, Fernanda, desesperada com o frio aceitou.

- Tá indo pra onde? – perguntou ele.

- Bloco dezesseis – disse ela – é aqui pertinho.

Ele assentiu e levou-a até o local desejado.

- Muito obrigada – disse ela por fim – eu não sei o que me deu, passei do ponto.

- Acontece – disse ele rindo da situação da garota. Ela era bonita, as sardas davam um toque especial, seus cabelos estavam molhados dando uma aparência mais escura que o loiro acinzentado habitual. Eles chegaram ao prédio em que ela ficaria. Fernanda agradeceu ao homem que a retribuiu com um sorriso simpático.

- Se cuida Fernanda – disse ele se despedindo e ela agradeceu de novo a preocupação dele. As amigas foram em cima dela quando ela entrou, perguntando quem era o bonitão que havia lhe dado uma carona no guarda-chuva.

- Não sei! – disse – um rapaz simpático.

- Qual o nome dele? – perguntou uma.

- Não perguntei – disse rindo do interesse das amigas.

- Mas você disse seu nome e não perguntou o dele?

- Eu não disse.... – interrompeu-se e lembrou que ele a chamou pelo nome, mas ela não havia lhe dito – estranho, bom, deixa pra lá.

Ela lembrou-se do homem, que de fato era bonito. Tinha um peito robusto, vira através da camisa branca que ficara um pouco transparente e denunciara o cuidado com o corpo que ele tinha. Os braços eram fortes e firmes e tinha uma tatuagem que ela não identificou no direito, o queixo dele era largo e a barba estava um pouco por fazer, dando-lhe uma aparência máscula. Uma pena que quando tentou ver seus olhos não conseguiu, viu apenas seu próprio reflexo nos óculos espelhados dele.

O telefone celular tocou no meio da biblioteca e Fernanda atendeu, recebendo olhares raivosos de quem tentava estudar sem ser incomodado, ela ficou rosa de vergonha e saiu da sala de estudo para atender a chamada. O celular indicava ser o número de Eliza.

A amiga lhe telefonara para dizer o que conseguira do namorado. Ela informou que o namorado havia lhe dito que todos os militares que foram mortos nos últimos dias pertenceram á tropas de paz no HAITI, ano passado, mas que havia uma lista grande com centenas de nomes, talvez mais de mil.

- Foi a única coisa que ele achou em comum, Fê – disse ela. – a lista do CIGS, é mais confidencial, teria que entrar em contato com a base, sei lá, não entendi direito essa burocracia. Ele disse que vai ser mais difícil e não sabe se vai conseguir, mas espero que isso ajude.

- Ajuda sim, obrigada. Me diz uma coisa: o exército não está investigando a morte desses militares? – perguntou Fernanda.

- Segundo o Júnior – disse Eliza chamando o namorado pelo apelido - Não! Vai saber por quê?!

Fernanda recebeu a lista por email, agradeceu à amiga e desligou, começou a vasculhar a lista, os nomes estavam em ordem alfabética, ela procurou o nome das duas vítimas e notou algo de semelhante nos dois militares mortos.

Marco acabara de entrar em casa quando seu telefone tocou, era Caio que acabara de deixá-lo em casa e agora pedia que ele descesse novamente, pois eles tinham encontrado algo. Quando Marco chegou do lado de fora, Caio já o esperava com o Vectra ligado.

“Não acredito que mataram outro cara!”, pensava Marco, a delegada já estava começando a ficar impaciente com a falta de pistas, mas o assassino era meticuloso e parecia saber o que estava fazendo. Ele entrou no carro. “Graças a Deus esta noite não tá chovendo”, pensou.

Caio contava ao parceiro que havia falado com a “estudante de jornalismo bonitinha”, ele não recordava o nome dela, mas que não sabia porque, mas ela ligou para ele ao invés de Marco.

- Ela disse que tinha algo quente para nós.

- Ah não cara! – disse Marco – é o que me faltava!

Caio riu.

- É, mas não pense que a gente vai levar ela com a gente – continuou Marco.

Caio parou o carro e encarou o parceiro.

- Você vai fazer isso com a menina?

- Pode apostar.

Caio não gostava da atitude do parceiro, mas arrancou com o carro e seguiram para o endereço da casa dela.

O Vectra parou em frente á casa de Fernanda, pelo que os detetives desconfiavam e agora confirmaram, ela era uma filhinha de papai. Morava em um bairro nobre, com uma casa de três andares, um Audi na garagem e janelas gigantes mostravam o interior escuro da casa. Eles tocaram o interfone e o portão de aço abriu automaticamente. Não precisaram falar nada, a câmera acima do interfone denunciara-os.

Fernanda estava com um roupão branco quando atendeu a porta, mas nada que escondesse a feminilidade da garota e o pijama de seda. Ela tinha um largo sorriso de triunfo no rosto e os cabelos estavam presos num rabo de cavalo. A garota convidou-os á entrar.

Os pais dela estavam viajando, pegaram um cruzeiro para Fernando de Noronha e só voltariam dali cinco dias, ela estava sozinha em casa.

- Você não tem medo? – perguntou Caio no seu primeiro contato visual com a garota.

- Não. Eu não acredito que esse cara queira me matar.

- É, verdade – disse ele – a noite está sendo longa e estamos cansados. O que você tem pra nós?

- Isso – disse ela passando uma lista que dizia: Tropa de paz brasileira – Haiti – 2006. Logo abaixo havia uma centena de nomes em ordem alfabética e ao lado deles, havia as patentes e números. Era o documento que Eliza lhe passara.

Os dois olharam por um instante, e depois a encararam, como que pedissem explicações.

- Se vocês notarem, o que vai ser difícil pelo grande número de pessoas, aí estão o nome do soldado Oscar Santos e do sargento Paulo Lopes, ambos estavam nas tropas de paz no Haiti em 2006. – Os dois localizaram os nomes.

Caio assentiu, mas aquilo não ajudava muito. Começava a ficar frustrado com a “parada quente” que Fernanda anunciara no telefone.

– Os dois estão inativos. – afirmou ela como se fosse óbvio.

- Onde você tá vendo isso? – perguntou Marco, poi não havia nada ali.

- Não está aí, está no meu email, mas eu apaguei essa parte antes de imprimir.

- Por que diabos você fez isso? – perguntou ele estranhando-a.

- Eu aposto minha futura reputação de jornalista, que as três próximas vítimas serão os que se inativaram assim que voltaram do Haiti. – disse ela – Não tem explicação um soldado e um sargento com aquelas mansões, por mais que recebam bonificações, não dá pra comprar tudo aquilo: casa, carros e tudo o mais. Tem alguma coisa de errado com eles, acho que eles se inativaram para não levantarem suspeitas.

-Não foge do assunto Fernanda – pediu Caio calmamente – porque você não imprimiu a situação deles?

- Pra ter uma garantia de que vocês não iriam me deixar de fora da investigação – disse ela nervosa com a chantagem, nunca fizera isso antes, ainda mais com dois policiais que poderiam prende-la por dificultar as investigações e talvez até por cumplicidade se alguém mais morresse, mas não importava, ela queria arriscar – se vocês quebrarem a promessa, vão ter que adivinhar quem está ativo ou inativo e vai ser BEM difícil – assegurou.

Caio começou a pensar, Marco olhava para o chão até que finalmente a encarou com um olhar amistoso.

- Tá, tem nossa palavra que você está dentro – disse ele, sabendo que poderia apanhar da garota quando quebrasse a promessa após receber a lista. Ele achava ridículo carregar uma estudante universitária pra lá e pra cá.

- Nós temos então que separar os ativos dos inativos – disse Caio – mas puta que pariu, tem muito nome aqui, mesmo com a sua lista, vai levar algumas horas.

Fernanda sorriu, estava doida por esse momento.

- Eu já fiz isso pra nós, PARCEIROS – disse ela enfatizando a última palavra e passando a lista que estava embaixo da almofada da cadeira em que estava sentada.

Os dois se entreolharam.

- tem 33 nomes – disse ela.

Os dois se entreolharam de novo. “Maldita garota esperta” pensou Marco e já pensava no que diria para negar a participação dela, quando Caio estendeu a mão para a garota.

– Descubra quais deles estão na cidade, se conseguir, está bem? – pediu Caio.

- Eu também já fiz isso, segundo a lista telefônica tem uns vinte e poucos. – disse ela – não ajuda muito. Acho que precisamos de alguma outra característica em comum, isso tá parecendo assassinato em série.

Caio sorriu.

- Bem vindo ao time, Fernanda – disse por fim.

Marco olhou pra Caio sem acreditar no que ouvira, enquanto isso, a estudante de jornalismo mais empolgada do mundo saía da sala comemorando. Marco continuava a encarar o parceiro.

- Tá olhando o que? – perguntou Caio rindo e indo em direção ao carro – Você prometeu, e vamos cumprir.

Marco continuava indignado.

- A propósito – comentou Caio, virando-se para ele – ela é responsabilidade sua!

Ace
Enviado por Ace em 26/04/2007
Reeditado em 26/04/2007
Código do texto: T464307