EXAME ENDOSCÓPICO
- Senhora Maria Celça!
- Sim, sou eu!
- A senhora já pode ir tirando os brincos, pulseiras, óculos...
Eu já estava com a primeira argola na mão. Tirei a segunda e prendi uma na outra antes de soltá-las dentro da bolsa. Depois guardei os óculos na caixinha, que teve o mesmo destino que as argolas. Ali desejei guardar o coração, quem sabe assim a ansiedade pudesse diminuir.
Antes de seguir para o local onde seria realizado o procedimento, um selinho básico no meu namorado, dali em diante denominado de meu “acompanhante”. Guiada pela mesma enfermeira de instantes atrás, chegamos até a sala. Ligando as luzes, num tom amistoso ela foi dizendo:
- A senhora vai tirar toda a sua roupa e vestir essa batinha, com a abertura para trás. Depois é só deitar aqui e se cobrir com esse lençolzinho, que eu volto já. Pode pôr tudo nesse saquinho plástico, inclusive as sandálias.
Fico impressionada com os diminutivos. Talvez pelo baixo nível de tolerância que tenho a certos mimos, acho isso exagerado. Sinto-me meio retardada ao ser tratada assim com tanto cuidado, com tantos “inhos”.
Enquanto me despia, imaginava se ali havia câmeras e se de outro quarto alguém tentava me ver nua. Rapidinho pus a bata e deitei, e me cobri. Em seguida, cumprindo o prometido, entra a enfermeira.
- Agora é só aguardar a anestesista.
Outra vez ela se foi. Na minha ansiedade solitária, meio assustada, passei a observar aquele espaço. Estava cercada por paredes brancas, que contrastavam perfeitamente com o azul da bata descartável que eu trajava. Seguindo o olhar para baixo, à altura de meus pés visualizei, numa estante de aço, vários equipamentos, com muitos fios e botõezinhos verdes, além de muitos outros em painéis que pareciam se multiplicar à minha frente. Ao meu lado esquerdo, dois tubos de oxigênio. Tentei girar o corpo para ver o que havia por detrás de mim, mas não pude alcançar muita coisa, além de uma espécie de balcão coberto de instrumentos médicos, caixas de luvas, pequenas peças e alguns aparelhos que não deu pra identificar.
Acima da cama havia um monitor grande, ali seriam vistas, pelo Doutor Beethoven e pela anestesista, as imagens no mínimo estranhas, pelo menos para mim, para a avaliação pretendida.
E de repente olhei minhas mãos, imaginando em qual delas seriam injetados o soro e a medicação tranquilizante. Tão enrugadinhas! Lembrei-me do meu namorando dizendo que estavam velhas, cheia de tracinhos, com a pele engelhada. E eu nem respondi pra ele, mas eu poderia ter dito que aquilo representava mais que sinal da idade, um sinal de trabalho. Tenho mãos que envelheceram mais rápido que o resto do corpo, mãos que lavaram e passaram, e que por muito tempo trabalharam duro faxinando. E que não tiveram o luxo dos cremes para protegê-las, já que as prioridades com que se gastar eram outras.
Alguém abre a porta e põe a cabeça como se me vigiasse. Era outra enfermeira perguntando se estava tudo bem. Podia ter respondido que não, que estava odiando ficar ali esperando, mas fui legal com ela e até sorri.
Presa naquele quarto enquanto esperava a anestesista, eu pensava um monte de bobagens. Quanto tempo eu dormiria? E se o colonoscópio perfurasse a parede do meu intestino como vi no Google? E se algo desse errado e eu morresse dormindo?
E me vieram recordações da minha mãe. Se tivesse a oportunidade de passar por esse exame a tempo de detectar o mal, provavelmente não teria morrido tão jovem. Quando foi sabido seu estado, já estava fora de controle, não havia mais nada a fazer.
Agora quem abre a porta é o Doutor. Não fala nada e sai, fechando-a novamente. E o sangue começa a ferver. Pensei: “será que vou ter que levantar para ir perguntar por que tanta demora? E me imaginei na recepção, fazendo um escândalo, mas lembrei da bata com abertura atrás e vi que nem mesmo em pensamento eu poderia sair dali. “Calma, Celça, calma!”, falou a voz da minha consciência.
Tudo bem, respirei fundo e pensei em dormir. Tive a ligeira impressão que precisava ir ao banheiro fazer xixi. Mas lembrei que havia feito isso assim que entrei naquele ambiente.
A cada barulho de porta abrindo eu me preparava para a entrada da anestesista. Outra vez alguém abre a porta. É a terceira ou quarta vez que isso acontece e ainda não é a criatura esperada. A voz me pergunta se estou com sono e faço um sinal com a cabeça que sim, bastante indignada por dentro. Antes de sair, a moça tenta ser amiga:
- Também, desde as quatro da manhã se preparando, né?
Preciso falar da preparação: bem como disse a anestesista, a parte mais complicada do exame. Às quatro da manhã acordei. Eram as três lacto-purgas tomadas na noite anterior fazendo efeito. Passei trinta minutos no trono, com uma dorzinha do mal. Quarenta minutos depois eu tomaria um minúsculo comprimido para não vomitar a tal solução de manitol, outro fármaco que eu tomaria 20 minutos depois, durante uma hora, de cinco às seis da manhã. O último copo da solução tomei sentada na privada. Mas essa peleja era a garantia de que meu intestino estaria totalmente limpo para a realização do procedimento.
Finalmente chega a anestesista. Uma moça simpática, comunicativa, que já entrou perguntando meu nome. Ao que respondi, continuou:
- Celça, quantos anos você tem?
- Trinta e sete.
- Você disse “trinta e sete”? Nossa! Você está bem, lhe daria uns trinta, no máximo!
Melhorei um pouco, confesso. E ela seguiu com as perguntas: como se chama seu acompanhante? O que ele é seu? Pela sua idade, essa deve ser a primeira vez que você faz esse exame, certo? Tem alergia a alguma medicação? Tem algum dentinho que sai?...
E me disse pra eu ficar tranquila porque a parte mais difícil do exame já havia passado, referindo-se à preparação com dieta e laxantes para a total limpeza do cólon. A enfermeira fez uma chamada telefônica e informou “está pronto”. Acho que estava falando com o doutor e o “pronto” era eu.
Verônica seguiu perguntando como havia sido meu réveillon. Extremamente comunicativa aquela moça. Temi que estivesse tentando desviar minha atenção por algum motivo especial. Mas, como estou aqui contando a história, suponho que não havia nada por trás daquela simpatia toda.
Fui orientada a me deitar sobre meu lado esquerdo e relaxar. Era a hora da “picadinha” para a sedação venosa. No meu polegar esquerdo prendeu um sensor para acompanhar os batimentos cardíacos e a concentração de oxigênio no sangue.
- Celça, agora vou aplicar uma medicaçãozinha... você sentirá uma ligeira tontura e em seguida dormirá.
E a partir daí o que sei do procedimento é o que li nas várias páginas que encontrei no site de busca tentando diminuir a ansiedade antes do exame. A inconsciência devido à sedação faz você não se dar conta da invasão que é esse exame. Não me recordo de nada. A sensação de fechar e abrir os olhos, num rápido piscar, na realidade foi um sono que durou vinte minutos.
- Celça, Celça, pronto, acabou! Resultado normal! Vamos, levante-se!
E fui levada para a sala de recuperação, onde permaneci pouco mais de uma hora com o “meu acompanhante”, enquanto esperava passar o efeito anestésico.