Mislene faz poesia com as mãos

Mislene tem trinta e dois anos, é solteira e mora sozinha numa casa de três cômodos na periferia.

não sabe ler nem escrever,

mas faz poesia com as mãos

em seu jardim,

usando terra, água, pedras e flores,

e também em seus bordados,

que ela vende a cinco reais a peça.

é a primeira vez que Mislene vai ao Shopping.

pagou sessenta reais pela passagem, com direito a marmitex, uma latinha de refrigerante e dois brinquedos no Parque Guanabara.

no ônibus, vai ao lado de Rita, sua amiga,

moça bonita, de vinte e poucos anos, que ainda não sabe que está grávida.

como Mislene,

Rita é analfabeta de pai e mãe.

terminou o Ensino Fundamental na rede pública,

mas não aprendeu nada. só sabe o nome da presidenta do Brasil

porque sua mãe recebe o Bolsa Família. já ouviu falar em corrupção,

mas não entende bem o que é.

ao ver um viaduto, na entrada da capital, Mislene sente um frio na barriga que é tudo de bom.

– é a expectativa de ver o Shopping, as escadas-rolantes, a árvore de Natal gigante...

Juca é o motorista do ônibus.

trabalha há dez anos na empresa, mas quer largar,

não aguenta mais.

“hoje peço demissão”, diz para si todos os dias, quando sai de madrugada para ir trabalhar.

quase todos os seus amigos também querem largar seus empregos:

porteiros, seguranças, balconistas, motoristas, metalúrgicos, tratoristas, lixeiros –

todos querem largar, mas não movem uma palha, não fazem nada,

ficam só reclamando – dos patrões, dos salários, das mulheres, dos filhos, das despesas, de tudo,

menos do tempo que passam juntos no boteco

bebendo cerveja e jogando sinuca.

mas largar para fazer o quê? que opções eles têm?

Mislene não reclama de nada.

Juca a conhece do bairro. acha ela estúpida, bocó. “nem dente ela tem, coitada”, ele diz, cheio de escárnio, e fica olhando ela passar na rua sorrindo, desdentada, feliz.

Juca é um revoltado.

como poucos em seu bairro, consegue ler e entender o que lê.

escreve um pouco também.

acha que os políticos querem mesmo é encher o país de mislenes e ritas: mão-de-obra barata, burra e feliz.

os alfabetizados críticos, tristes e revoltados serão perseguidos a pauladas na rua, até desaparecerem completamente, ele diz.

– Juca sofre muito com isso.

às vezes chora.

Juca vira à direita, depois à esquerda, vai reto, põe terceira, quarta, reduz, reduz de novo,

e Mislene vê o Shopping.

seus olhos brilham de alegria.

é a primeira vez que sai de sua cidade...

Ah, Mislene.................................

Mislene tem trinta e dois anos, é solteira e mora sozinha.

não sabe ler nem escrever.

mas faz poesia com as mãos...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 08/01/2014
Código do texto: T4641154
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