DIALOGANDO COM A VIDA E A MORTE

Pouco mais de uma semana após o falecimento de meu avô materno, descobri que serei pai. Que contraditória essa nossa vida, não?

Uma vida se vai e dá lugar a outra que chega. Hoje se chora de tristeza pela pessoa que parte; dias depois o pranto é de alegria por uma vida que está em formação.

E viva com tanta emoção, com tanta coisa boa e ruim misturada. E viva sendo órfão de avô e se descobrindo pai.

A morte é dona insubstituível dos nossos destinos, ninguém foge, escapa ou “dá volta nela”. Ela é estranha e, por mais que se espere a sua chegada, por mais que se suponha que virá, quando definitivamente chega, ela é negada e a dor aperta.

Ao olhá-lo sereno, deitado no caixão e deixar gravado definitivamente na minha memória aquela cena, questionei-me sobre a tênue linha existente entre a vida e a morte, entre o que entendemos e o que, por mais esforço se imprima, não se colhe uma explicação realmente convincente: o que o mantivera vivo? Aquela pessoa repousando sobre o colchão de madeira era a mesma que há dias eu vira e conversara. Qual a diferença entre os dois momentos Sinceramente, não sei.

Não sei onde se perdeu o fio de vida que o mantinha vivo igual a todos nós, mortais terrenos. O que é que ele não tinha mais que antes possuía e o deixava vivo? Em minha simplória cabeça não coube resposta. Em meus argumentos não houve eco. “Isso” que perdera, não seria possível pegar em outro lugar para repor? Não seria possível conseguir em outra pessoa que não desejava mais ter?

Difícil abstrair, entender e aceitar qualquer explicação.

Complicado mesmo é entender que não se poderá mais dialogar com ele. Não na forma tradicional que os vivos fazem. Cada religião explica de maneira distinta a feitura desse diálogo desejado.

Velando o corpo fez-me perceber que hoje era ele que estava lá, disposto num dos lugares mais temidos por todos. Daqui um tempo -ou até menos do que se supõe-, seremos nós. E chorarão nossos filhos, os sobrinhos, os amigos e demais familiares.

Estranho concretizar esses pensamentos na cabeça.

Hoje lamento não ter conversado mais com ele. Mas, principalmente, fico feliz por duas semanas antes de sua partida, tê-lo visitado. Teria remorso, e muito, se não o fizesse. Porque os compromissos profissionais (esses tais compromissos que nos desumanizam) sempre adiaram a ida, sempre prorrogaram para o terceiro tempo o passeio nas pessoas que pouco vemos e muito amamos.

Que incoerência a vida: uma morte, uma vida.

Mesmo sem saber, meu avô foi bisavô. Ele já era “bisa” do filho do meu primo. Mas recebia “bis” sem que ninguém soubesse. Esteja onde estiver, deve estar muito feliz com essa novidade.

No dia do seu enterro, quando terminava o cerimonial velando o seu corpo e exatamente 24 horas após o óbito, uma tempestade que gritava aos quatro ventos a sua proximidade caiu por cerca de 10 minutos. Torrencial. Lavando o chão. Um marco. Um rito de passagem. Absurdo pensar nisso naquele momento. Absurdo, sim, não pensar nisso naquele momento.

Sua vida tão atribulada e com várias histórias não muito agradáveis encerrava e os céus selavam esse fim com uma tempestade enorme. E após toda a tormenta, um sol intenso.

A família reuniu-se. Era devido a um motivo desagradável, mas estava reunida. Foi o único momento bonito daquele final de semana. Mas foi um. E foi bom. Bom por cada um sentir conforto da dor no compartilhamento do sofrimento com os demais. Bom por sentir a afetividade de todos após um dia nublado, onde o céu negro havia sido a imagem mais terna que se vira.

Foi um momento de diálogo com a morte. De uma conversa temida, mas franca, singela e sincera. Um momento de ter a certeza absoluta que a nossa hora chegará. Um dia. Algum dia. E o mais incrível: ninguém sabe quando. Ninguém tem esse poder. E isso se torna absurdamente desconfortante.

Um dia serei eu. Esse dia pode ser hoje. Pode ser amanhã. Ou daqui a muito tempo. O fato é que um dia virá e ninguém sabe como.