Ainda vou me lembrar disso
Ainda me lembro de correr no quintal sem medo da temperatura do sol
Ainda me lembro de cantar e dançar nos dias de chuva
Cheio de emoção
Cheio de vida.
Era muita alegria e eu não conseguia conter.
Hoje eu uso bloqueador solar ao acordar
Evito tomar chuva para não adoecer
Pois tenho contas à pagar
Pois tenho muitas coisas para fazer em vez de brincar e esquecer.
Esquecer que o mundo já não é mais seguro
E que tudo me assusta e me assombra
E que eu devo constantemente me proteger
Pois cresci e as pessoas me olham como se eu fosse um adulto
Como se a criança em mim tivesse que morrer para que o “eu” que eles querem de mim venha vencê-la e destruir minha fortaleza.
Ainda me lembro de andar descalço, correr na lama, subir em árvores
Ainda sinto esses desejos em mim mas os sucumbo, eu sou adulto agora.
A cada ano que se apagam as velas do bolo, me convencem que o pequeno príncipe tem que morrer para que o Capitão Gancho Capitalista venha a prevalecer.
E eu não posso chorar na frente deles.
Eu tenho que me esconder.
Me esconder por detrás de falsos sorrisos, falsos semblantes
A máscara perfeita para o teatro cotidiano.
Da janela da sala eu vejo uma multidão trilhando um caminho cheio de solidão.
Escondendo-se de si mesmos, eles preferem se cegar para não ver a verdade escorrendo em sangue em seus rostos porque eles santificaram a ignorância e já não há mais nada que se possa fazer.
Eles enxergam seus inimigos por todos os lados mas não se enxergam.
Eles escutam os mais “tocados” mas não se escutam.
Leem os mais lidos mas não leem os próprios atos.
Há uma força empurrando-os para o precipício mas eles não querem lutar contra.
Estão presos em suas cavernas e não enxergam a luz.
E em sua escuridão, endeusam o Mal.
São todos suicidas.
Da janela do meu quarto eu vejo crianças limpando pára-brisas num trânsito perigoso.
Vejo crianças abandonadas nas ruas, dividindo o pão num chão com papelão.
Eu vejo crianças gritando de desespero em suas vidas solitárias, mas ninguém se importa. Todos querem assistir o Domingão do Faustão.
Ninguém quer perder o último capítulo da novela nem o jogo decisivo do Flamengo x Vasco.
Uma criança acaba de morrer de fome.
E agora todos nós desfrutamos de nossa paz superficial. De nossa maldade e crueldade banal.
Uma vez ouvi alguém dizer que as crianças são o futuro de uma nação. Mas de qual?
Tomo mais um comprimido de lítio e ele acelera o meu coração.
Parece que eu estou vivo. Há quanto tempo você não bate assim amigão!?
Há quanto tempo você não saltita assim né?
Eu choro em minha depressão.
Então eu vejo que não sou diferente dos viciados em crack, álcool, futebol, mma ou televisão.
Estamos nos anestesiando da nossa morte diária. Estamos adiando a nossa morte física pois ainda somos a mão de obra e não podemos deixar de rezar não!
O céu estará lá, para quando tudo isso acabar e nós vermos que tudo isso não passou de mentiras vendidas para as dores das nossas almas.
O meu coração sente a navalha dos comerciantes da fé e me rasga o espírito de desesperança.
Vejo minha vida repartida em cápsulas manipuladas.
A vida é feita de drogas. E drogas são usadas para o nosso meio de sobrevivência.
Estamos todos drogados. E cuidado! Leia a bula antes de “tomar a sua dose de vida” pois ela pode ter efeitos contrários.
A consciência uma vez tomada pela realidade sombria que nos cerca não nos deixa escapar da loucura diária, da insanidade coletiva compartilhada normalmente e comumente.
A existência torna-se doença e livros de auto-ajuda se tornam Best-seller’s.
O consumismo vem preencher o nosso vazio, saciar nossas angústias, calar temporariamente o nosso desespero.
A tecnologia nos transforma em seres virtuais e sem vida, sem verdade e projetos falhos de celebridades. Todos querem compartilhar suas vidas. Todos nós queremos ser vistos. Pois viver é provar que está vivendo através de fotos e marcações coletivas para garantir a certeza que se viveu e que de fato, nada aprendeu.
Pois eu sou a roupa que visto, o aparelho que uso da marca mais cara. Sou os músculos bem definidos e um rosto bonito. Isso é tudo. Tudo isso eu sou e então tudo posso.
A vaidade sagrada nos torna bonecos lindos e infláveis.
O medo de envelhecer nos torna caricaturas de nós mesmos.
O culto ao corpo nos torna burros e limitados.
Pois o ser humano não é somente estômago e sexo. É também angústia e desespero.