Sonhos de noites de verão
São 3:00 horas da madrugada. Fui despertado há pouco pelo ronco surdo do motor diesel de um caminhão que se postou sob a janela de meu quarto e pelo som de vozes de meu pai e de minha mãe, misturadas a de um estranho. Permaneço deitado, sob os lençóis macios, fingindo que ainda durmo mesmo que com o coração ansioso para me integrar à revolução que sei acontecerá daí a pouco, somente contido pelo aguardar da suave sensação do beijo que minha mãe depositará em minha face, chamando-me, ritual observado também para com as demais irmãs e irmão. Chegou o dia tão aguardado...
Nos cantos de nossos quartos ainda se encontram os brinquedos que ganhamos no dia anterior como presentes de Natal – bicicletas, bonecas, carrinhos, tratores, espingardas e revólveres de espoleta, velocípedes - brinquedos estes que, coincidentemente, haviam enchido nossos olhos em nossas peregrinações diárias aos estandes expostos na “A Arca de Noé” e na “Casa Kafuri” em dias anteriores e que Papai Noel nos trouxera. Até hoje não sei e até mesmo procuro não saber como que ele, Papai Noel, descobriu nossos desejos, destinando-nos exatamente os presentes que havíamos escolhido e desejado.
Eu e Lucinha, irmãos mais velhos, participamos diretamente da revolução que sucede em minha casa, auxiliando nossos pais, o motorista e o Ganso, com o desmontar de algumas camas, o transporte e embarque no caminhão de colchões, fogão, roupas de camas, as malas individuais de cada um dos irmãos mais novos, das caixas de mantimentos e sem nos esquecermos dos engradados de guaraná Festa ou Netinho, que sorveremos através das tampas furadas com prego, tudo organizado na carroceria do imenso caminhão que nos conduzirá ao paraíso dentro de instantes, após operação semelhante na casa de Seu João Luz, que partilha o mesmo caminhão, em direção a Anchieta. Novos personagens se integram, Dona Antonica, Nininha, Andiara e demais irmãos e, junto com nossos pais à carroceria, iniciamos a viagem, acomodados e abraçados, deitados nos colchões e sob lençóis a nos protegerem na noite fria, apesar de já verão.
Ao passarmos por Rio Novo do Sul, cumprindo um ritual de todos os anos anteriores, enquanto os irmãos menores ainda dormem, ao passarmos defronte a um restaurante que até hoje ainda existe, gritamos a plenos pulmões “caçarola italiana”, despertando-os. Não sei o porquê disto, certamente de alguma história que nosso pai nos tenha contado e decorrente de sua passagem pela região, em sua juventude. E sorrimos, felizes...
Logo após, os primeiros sinais de mais um dia começam a surgir no céu ainda escuro. E Nininha começa a cantar “Luar do Sertão”, no que o seguimos, em um coral cada vez com mais integrantes, todos irmanados no enlevo do momento. E, em cada um de nós, sentimos crescer a ansiedade para logo chegarmos a nosso destino, transitando cambaleantes por estrada de terra batida, olhos postos, todos preocupados em ser o primeiro a avistar o mar, dentro de instantes, o que será saudado com a anunciação de outro já o vira, por vezes contestada.
Iriri, chegamos. Iriri é uma pequena vila de pescadores, com algumas poucas casas de veranistas, bem simples, bucólica, ainda sem ruas calçadas e com as casas ainda iluminadas por lampiões de querosene, os quais deixam a mancha preta de fuligem nas paredes onde são colocados todas as noites, um paraíso sonhado, aguardado e vivido a cada seis meses, por ocasião das férias escolares. Antes mesmo de completarmos nossas tarefas de baixarmos nossos pertences e encher a caixa d´água tocando a bomba manual, serviço que me competia como o “homem da casa”, corríamos até a praia e admirávamos seu mar, o mar de Iriri, do Iriri que tanto amávamos e amamos.
Ali viveremos por pelo menos dois meses, até a quarta feira de cinzas, após o carnaval, com nossa famílias exponencialmente aumentadas com a adoção mútua e recíproca de centenas de amigos e amigas de outras cidades e que cumprem o mesmo ritual, a cada ano. São os Jucas, Robertos, Paulinhos, Mários, Edsons, Buts, Danilos, Sérgios, Manoeis, Júniores, Manlios, Lacerdas, Bebetos, Toninhos, Wanderlis, Adão, Delfins, Lucianos e são também as graciosas meninas, algumas paqueras, são as Heloisas, Matildes Amélias, Consuelos, Neuzas, Angelas, Edilces, Sandras, Sonias, Rozelis, Izabeis, Lícias, Márcias, Célias, Penhas, Elianes, Terezas, que conosco compartilharam este mundo de sonhos, quase que irreal e que até hoje permanece em nossas melhores lembranças e corações, principalmente ligados pelo amor incontinenti a este rincão, amalgamados pela saudade imensa desta época.
O “nosso Iriri”, o Iriri que vivemos, este Iriri de sonhos sempre nos acolhe de braços abertos, a cada ano e vê as mudanças que ocorrem em cada um de nós e, também, nele próprio, modificando-o. Sob as asas da modernidade, vê a instalação de gerador com que passa a iluminar as casas, com seu piscar das luzes por três vezes, pontualmente as 22:00 horas indicando que será apagado dentro de instantes, fazendo com que o céu explodisse em estrelas que agora norteiam nosso caminhar. E, céleres, interrompemos o baile onde aprendemos os primeiros passos de dança nos salões do Costa Azul e corremos para casa, principalmente as meninas, ansiosas no aguardo da serenata que daí a pouco apresentaríamos, organizado para elas, capitaneados pelos filhos de Peti, com Mário ao piston e Jorge Edson ao violão e todos nós a cantar “O mar”, afinadíssimos, suponho. E, como recompensas, desfrutávamos das bananas e biscoitos que elas punham em suas janelas para nós, como tira gosto à cachaça Pitu que bebíamos.
Nas manhãs, nossos rituais compreendiam os passeios pelas pedras ao final das praias, onde comíamos ostras frescas com limão ou até mesmo os sururus que colhíamos e cozinhávamos em casa, acompanhados pelo peixe fresco comprado ao Caboclo, em sua diária faina de lançar e recolher redes ao mar. Meu pai se tornara seu amigo e tinha o privilégio de, antes que qualquer outro, poder escolher os enormes camarões brancos mantidos em enormes vidros, em conserva e os linguados que eram devolvidos ao mar por pura superstição, não sem antes contar sua história das razões de suas bocas tortas e olhos esbugalhados em somente uma de suas faces.
Nas praias, onde a turma se reencontrava diariamente, cada qual portando sua barraca e sem o assédio dos “barraqueiros” de hoje, deliciávamo-nos nas águas tépidas e cristalinas, deitados em suas areias pretas e que dizem com propriedades medicinais, mergulhando em busca da pedrinha, defronte à casa de Vevei – Harvei Vargas Grillo -, que nos carnavais fazia sensação com seu caminhão trafegando por todo o Iriri sem motorista, acompanhado pelos tantos homens, seus amigos, fantasiados, retirando os poucos que não os acompanhavam de suas próprias casas e dando-lhes banhos de lama, retirada das poças em que tio Renato colocava bonecos de cabos de vassouras com cartazes indicando que se tratava do prefeito, em protesto pelo descaso para com nosso rincão.
Oh, lembranças, doces lembranças deste Iriri que nos enche de saudade, dos torneios de vôlei todas as tardes, do enlevo de suas noites na boite de Dona Laura, onde vivemos os primeiros amores ao som de Ray Charles cantando I can´t stop loving you, More, Estranho na praia, A whitter shade of pale, ou em bailes com Mário ao piston ou ao teclado e aos primeiros acordes do rock de Chubby Checker, com But dando show com seus passos que procurávamos imitar.
É um Iriri de calça e blusão brim coringa, anterior à invasão das Lee e Levis, de calções “double face” que nossas mães faziam para nós com feixe éclair dos dois lados, um Iriri de peregrinações a Piuma, a pé, em bandos, para roubar coco em seu coqueiral, para roubarmos cabritos na lagoa, para colhermos ingá descendo o rio em jangadas de bananeira desde o monte Agá, de virmos cantando pela estrada fazendo bandinha, cada qual com seu instrumento, em reprodução onomatopéica: “bun-da, bun-da - cu de pato, culhão de elefante - bun-da, bun-da - arranca pentelho bate cu bate culhão..., até sairmos correndo a fugir de tiros que um morador dava, aos gritos de “quero a letra dessa música, seus filhos da puta... Doces lembranças, meu Iriri.
É um Iriri de noites em que víamos Manlio, em noites de lua cheia, quando a maré vazante transformava a praia do Costa Azul em uma larga pista em que muitos davam cavalos de pau com seus carros e, logo após lançar o simca chambord zero quilômetro dentro do mar, carro que seu pai comprara especialmente para ele vir a Iriri paquerar seu grande amor, em que nos lançávamos à caça de guruçás, com lanternas, guardando-os em caixas de papelão para os soltarmos dentro da boite da época, levados por Bebeto em sacola de papel sob a camisa e que deu a maior confusão quando os mineiros viram aquelas “aranhas caranguejeiras” subindo pelas paredes e destacadas pela luz negra e saíram correndo, atropeladamente.
É um Iriri de grandes paixões, Iriri do realmente primeiro amor, mantido até hoje no mais recôndito de minhas melhores recordações, Iriri que não mais existe a não ser em meus sonhos, quiçá de tantos outros que também ali amaram, se enterneceram e viveram. Um Iriri que não mais se reconhece quando se volta as suas praias e seus recantos, por elas se caminha dolente e onde ora se sente como um estranho na praia.