CALORIA ZERO

Hoje cedo Jandira subiu os 600 degraus da escadaria do Cristo de sua cidade com um único propósito: perder as calorias que ingeriu ontem ao atacar como uma louca o panetone trufado que ela ganhou do Otto, seu namorado; mas quando chegou ao topo da serra, ela teve a certeza de que, mesmo que passasse a manhã inteira subindo e descendo aqueles degraus, não conseguiria se livrar do excesso calórico – um algo a mais que, agora, já de volta ao lar, ela sente correr em suas veias como um rio de gordura, uma graxa grossa que, ela acredita, menos de dez horas de caminhada não conseguiriam eliminar.

Ela então decide correr na avenida, sem se preocupar com a chuva que se arma sobre a cidade e que amanhã será notícia nos jornais locais como sendo a pior dos últimos dez anos, com centenas de famílias desabrigadas, onze deslizamentos de terra, cinco prédios interditados e um acidente feio na avenida envolvendo dois carros e um caminhão.

Mas vamos por partes.

Como eu dizia, Jandira resolve correr, e não quer nem saber da chuva que começa a cair, nem dos raios e trovões, porque sua vida agora é se livrar do excesso de gordura em seu corpo – porque viver não é possível com aquilo dentro dela: cerca de 1.200 calorias a mais do que o normal, pelos seus cálculos.

Antes de sair, Jandira confere as últimas anotações que fez no seu caderno de calorias, para ter certeza do esforço que terá que fazer para queimar os dez pedaços de panetone trufado que ela comeu ontem; e embora esteja angustiada pelo fato de ter que correr três horas durante o dia e mais duas à noite, ela levanta a cabeça, respira fundo, diz para si mesma que é linda e poderosa e sai, com a chuva já grossa ensopando-lhe o corpo de deusa jovem, inteligente, maravilhosa e imortal.

Jandira é realmente muito bonita. Na academia ela se acha imbatível, desfila na frente do espelho o tempo todo, admirando-se orgulhosa, enquanto vai captando discretamente os olhares que lhe dirigem os jovens musculosos que lá batem ponto todos os dias. Quando ela passa, eles se esquecem por alguns segundos dos seus próprios corpos bombados e se entregam à contemplação luxuriosa daquela mulher radiante que, segundo eles, se não se chamasse Jandira, seria perfeita.

Agora Jandira está correndo na avenida, a chuva caindo forte, alguns carros passando com o som no último volume e seus ocupantes bêbados (vindos de alguma festa num sítio qualquer) encarando aquela deusa de camisa branca molhada sem soutien, os seios empinados, a cabeça empinada, o nariz empinado, tudo empinado.

De repente, uma grande enchente toma conta da avenida. Em poucos segundos a água chega aos joelhos de Jandira, que nem liga, acha até bom, porque assim ela força mais os músculos, perde mais calorias.

A água continua subindo, mas Jandira se mantém firme em seu propósito de queimar aquele maldito panetone que corre gordo e doce em suas veias – ela não desiste, porque desistir não é com ela, vencer é o seu lema desde que nasceu: a felicidade, para ela, está em vencer, em ser a melhor, a mais bonita, a mais gostosa, a mais inteligente; para ela é uma questão de honra queimar aquelas calorias, sua vida agora depende disso. “Foco, Jandira, foco”, ela diz. E a água da correnteza aproxima-se já de seu quadril quando, de repente, dois carros e um caminhão descem em alta velocidade uma rua que corta a avenida, arrastados por uma enorme enxurrada, e se chocam bem em cima de Jandira, que morre na hora, esmagada pela carga do caminhão que, por ironia do destino, é constituída de duas mil caixas de panetone trufado.

Jandira agora é caloria zero.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 29/12/2013
Código do texto: T4629218
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.