BASTIDORES DE UMA ENTREVISTA
- Boa noite, senhoras e senhores, hoje à noite, com EXCLUSIVIDADE, entrevistaremos em nossos estúdios, dois SOBREVIVENTES das TRAGÉDIAS que abalaram não apenas dois países, mas todo o MUNDO – diz a repórter, depois de ter escutado em seu fone, as ordens do diretor para intensificar a voz nas palavras exclusividade, sobreviventes, tragédias e mundo.
A câmara desvia do rosto da repórter e aponta para o rosto das duas mulheres asiáticas que serão entrevistadas.
- Ching Ying e Naingngandaw são sobreviventes dos dois grandes desastres que abalaram a Ásia: Ching do terremoto que matou 8.000 pessoas na China e Naingngandaw do Ciclone que segundo estimativas já causou a morte de 32.000 pessoas na Birmânia ou Miamar.
Em um rápido flash, imagens das duas tragédias surgem na tela da TV: crianças subnutridas, parentes chorando suas vitimas, casas destroçadas, corpos boiando nas águas, tudo sob uma trilha sonora instrumental melancólica, que aumenta o tom, toda vez que a imagem se centraliza no rosto de um pobre desafortunado.
- Entrevista primeiro a Miamense ou a Birmanense. Sei lá! – ordena o Diretor – Entrevista a mulher com os olhos menos puxados.
A repórter obedece, e o cinegrafista aproxima a lente do rosto da mulher.
- Senhora Naingngandaw – diz a repórter – Como foi assistir IMPOTENTEMENTE a sua FAMÍLIA ser LEVADA pelas ÁGUAS?
Close no rosto da mulher. Não há lágrimas, apenas uma ira pulsante em seus olhos.
- Pior foi assistir o meu governo recusar ajuda internacional em nome da política. – diz a mulher, quase gritando. - Tragédia não foi o Ciclone, pior é a ignorância humana!
- Corta! – ordena o Diretor.
- Estamos ao vivo – revela o cinegrafista.
- Muda para a outra asiática. AGORA!!!- grita o Diretor. - Ninguém quer saber de política. O ibope desceu dois números. Pula para a outra entrevistada!
- Senhora Ching – diz a repórter, improvisando e sentando-se ao lado da Chinesa – Como foi para a senhora, a experiência de ver toda A SUA FAMÍLIA ser enterrada VIVA durante o TERREMOTO?
A chinesa segurava um tigre de pelúcia em suas mãos e começa a contar sua estória com tristeza:
- Esse tigre pertencia a minha netinha – diz a mulher emocionada.- Ela era tudo pra mim.
- Close no tigre! - ordena o Diretor para o cinegrafista. - A audiência está subindo de novo.
E a entrevista continua...
- Só Deus sabe de onde preciso tirar forças para continuar – diz a mulher e a imagem vai subindo do tigre para o seu rosto que ameaça virar uma cachoeira.
- Isso mesmo! – grita o Diretor – Faça as perguntas que fazem chorar!
- Como é chegar em casa e não ENCONTRAR NINGUÉM, nem mesmo a sua CASA? – pergunta a repórter e o rosto da mulher vira mar de tanto chorar. Quanto mais ela chora, mas a audiência vai aumentando - Dói, não? – complementa a repórter que também desata a chorar.
- Continua – manda o Diretor - vamos bater o recorde de público!!! Agora, faça a pergunta para fazer a audiência chorar.
- E você em casa?- diz a repórter, olhando para a câmera. - Olhe bem seus parentes ao seu redor, aqueles que você ama, e medite nisso: essa tragédia poderia ter ocorrido com você!
Naquele momento em milhares de casas; cada indivíduo que assistia a entrevista, começa a chorar e as lágrimas aumentam ainda mais, quando a mesma música triste é tocada, as mesmas imagens da tragédia são mostradas, os mesmos closes nos rostos das pobres vitimas,numa exposição interminável desses desastres que diminuem a vida de uns e aumentam a fortuna de outros.