Sabiá, a majestade indesejada
É o tipo daquelas matérias que beiram o nonsense, que você jura que é piada, lenda urbana ou pegadinha do Sílvio Santos. Mas era a mais pura verdade, veiculada pelo jornal Folha de São Paulo:
“Cantoria de sabiá-laranjeira na madrugada divide ouvidos paulistanos”
A reportagem aborda as reclamações dos moradores da cidade de São Paulo com o incômodo causado pela cantoria de Sabiás-Laranjeira durante a madrugada. Esses pássaros, extensivamente homenageados em prosa e verso na música brasileira, e considerados uma das aves símbolo do Brasil, cantam de madrugada para que possam ensinar os seus filhotes, sem contudo expô-los ao risco do ataque de predadores.
E há cada vez mais paulistanos reclamando da “poluição sonora” que esses seres diabólicos fazem, atrapalhando o silêncio e a tranqüilidade reinantes nessa pacata cidadela de 15 milhões de habitantes.
Sei que a natureza se sustenta através do equilíbrio perfeito de seu eco sistema (que volta e meia damos um jeito de burlar), mas não sou nenhum eco-natureba panfletário e dogmático. Cobras peçonhentas, aranhas caranguejeiras, escorpiões, tempestades e terremotos também fazem parte desse equilíbrio fino, mas prefiro que se “ecossistemizem” (sic) bem longe de mim.
Mas reclamar do barulho de canto de sabiá na histriônica pauliceia desvairada já é um pouco demais pro meu estoque de Fenobarbital.
O povo de São Paulo já está tão acostumado com o caos e a selvageria que quando vê qualquer intervenção em contrário se sente ameaçado, fora de sua zona de desconforto.
Já se acostumou a não encontrar mesa na barulhenta praça de alimentação, onde possa comer em paz o seu hambúrguer feito de borracha e colesterol. Já se acostumou a sair do trabalho mas não chegar em casa, porque o trânsito não transita. Já se acostumou a fazer recreação nos shoppings centers, sobrecarregando o cartão de crédito que o obrigará a trabalhar mais horas e ficar ainda mais refém do seu escravizante estilo de vida sem sentido. Já se acostumou a fugir da cidade, às hordas, toda vez que uma brecha mínima aparece no espremido calendário. Já se acostumou com o monóxido de carbono e com a brisa bio-desagradável que sopra da marginal do Rio Tietê. Já se acostumou com tratores, britadeiras e o ronco de motores e companheiros de alcova. Mas não se acostuma mais com o canto de sabiás. De tão acostumado com o caos, se assombra com a paz.
Numa cidade em que toda semana se troca uma área verde por um prédio que vai piorar ainda mais o trânsito, não é de se espantar que os pássaros migrem para o topo dos prédios, ou o que quer que tenha sobrado para eles nessa selva de concreto armado. Não é que os sabiás tenham tomado gosto pelos cada vez mais feios prédios da cidade, é que tomaram todas as áreas verdes em que eles poderiam habitar.
Para conviver com o “barulho” dos pássaros é sempre possível recorrer a protetor auricular, algodão ou janela de vidro duplo. Pena que não haja antídoto para conviver com a chatice de gente estressada e intolerante. Tem cada vez mais sociopata pra cada vez menos psiquiatra.
São Paulo, assim como muitas cidades brasileiras, precisa de menos trânsito, menos concreto, menos cinza, menos mau humor, menos burrice urbanística, menos neurose, menos incivilidade. E um pouco mais do canto de sabiás.