Uma Cultura sem fundo
UMA CULTURA SEM FUNDO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 18.12.13)
É mais ou menos como o caso de um poço sem fundo: quando se imagina que a situação está ruim, tão monstruosamente ruim que não pode piorar mais, percebe-se estupefato que ainda há maldades em estoque e tudo fica pior e mais cruel; quando se pensa ter chegado ao fundo do poço - conforme nos ensina Thomas Mann em "Confissões do Impostor Felix Krull": " Pois na verdade as possibilidades coloridas e alegres da vida começam quando ocorre alguma catástrofe que realmente modifique nossa situação, como, por exemplo, a catástrofe que se designa como falência. Um dos momentos de maior esperança na vida é quando tudo vai tão mal que não poderia piorar mais." -, descobre-se que o poço não tem fundo. Ou, ao menos, que ali não era o fundo do poço.
Há sacos que igualmente não têm fundo, como o saco do dinheiro e do poder. O sujeito nunca se satisfaz com o que acumulou. Como rezam os manuais de administração e empreendedorismo, é preciso crescer sempre (a despeito de considerações outras) para se manter vivo. Quem para, é atropelado e morre. Na política, também, poder nunca é bastante. Parte dos políticos seria ditador se não houvesse controles. Ditador e larápio. A dobradinha poder e dinheiro, não tem?
Agora está para se criar, em Santa Catarina, a Cultura sem fundo. Não que seja uma Cultura que não acabe nunca, mas, ao contrário, uma Cultura que acaba antes de nascer. E isto vale também para o Esporte, para os projetos sociais e até para o Turismo, menina dos olhos do Executivo e que se imaginava intocável. Todos sem fundo para atender ao saco sem fundo dos gastos do Governo. O passo fundamental foi dado numa data emblemática, facílima de lembrar: 11.12.13, quarta-feira passada. Agora só falta uma assinatura: a sanção do governador. Coisa que não deve tardar.
Os fundos foram criados para garantir recursos a projetos de suas áreas: Fundo Social e Fundos de Incentivo à Cultura, ao Esportes e ao Turismo. Conselhos específicos deliberariam sobre políticas públicas e projetos que seriam atendidos, bem como valores que receberiam - mas isto apenas na teoria, porque na verdade comitês gestores de três membros com maioria governamental e, sobrepondo-se a eles, a Casa Civil decidem a quem, quanto e quando liberar os recursos. A despeito da avaliação dos conselhos e mesmo em desacordo com eventuais pareceres contrários. Ou seja: se fosse coerente, o Governo extinguiria logo os conselhos, pois lhes dificulta o funcionamento efetivo e deles ignora as recomendações. Extinguir os conselhos como, na prática, está extinguindo os fundos.
No atropelo de final de ano o Governo empurrou inúmeros projetos de lei tratando do polêmico pacote salarial dos servidores públicos para aprovação (não para discussão e deliberação, mas para aprovação forçada mesmo) pela Assembleia. O líder do Governo, a mando da chefia, propôs emenda substitutiva global ao Projeto de Lei Complementar 0043.7/2013, de origem governamental, e nela enxertou o exótico Artigo 31, que autoriza o Poder Executivo a utilizar os recursos daqueles quatro fundos para cobertura de insuficiência financeira do seu caixa. Permite, pois, saquear os fundos. Obedientes à voz de mando, os deputados o aprovaram por 27 votos a 6, sem abstenções.
O mais triste é que, pelo menos até a noite de domingo, o sítio da Assembleia exibia o PLC 43 original mas omitia o texto do substitutivo efetivamente aprovado.
Se for precavido, o Governo veta o seu próprio Artigo 31 e preserva os fundos.
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.
(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.
Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"