TRAVESSURAS EM UMA TARDE DE VERÃO

Observava minha mãe andando de um lado para o outro. Parecia ansiosa. Punha umas roupas sobre a cama, examinava-as com cuidado, afastava-se do quarto, espiava pela janela. Chamava-me a atenção. Exigia que me arrumasse também. A vizinha aparecia, brejeira, feliz. Cabelos muito loiros, tingidos. Voz fina, esganiçada. Olheiras pesadas sob os olhos. Saíram as duas, eu seguindo-as, chutando pedra, caminhando por entre os trilhos do bonde, minha mãe pedindo que saísse, era perigoso. Esquecia rápido as recomendações. Meu olhar, em seguida se detinha na velha casa caiada de branco, postigos verdes, de janelas sempre cerradas, aspecto meio sombrio. Minha mãe suspirava curto. Eu longo, na expectativa do desconhecido, no sorriso infantil da descoberta. A vizinha se rebolava, com a bolsa branca pendurada no braço. Minha mãe esfregava as mãos, suadas. Entramos, a porta quase não se abriu. Tudo em penumbra, pessoas que se mexiam pelos cantos, a sala completamente ocupada. Começaram os cânticos. Minha mãe apertava a minha mão, com força. A vizinha se apresentara, participando ativamente dos procedimentos religiosos. Eu me afastei uns passos, fui saindo lentamente do círculo que rezava e cantava e aproximei-me de uma porta que dava para um corredor imenso, de ladrilhos em preto e branco. Havia cruzes, desenhos estranhos de giz, no piso. Eu os apagava rapidamente, com os pés. Pulava sobre eles, ultrapassando-os, como se jogasse amarelinha, até chegar a última peça da casa e levei um susto, ao ver um homem numa cadeira de rodas, que acenava negativamente a cabeça. Nas pernas, um cobertor leve, na cabeça poucos cabelos enfeitavam a careca, os olhos fundos. Fiquei paralisado, na última porta, com aquele olhar incisivo, censurando a minha atitude. Ele falou alguma coisa inaudível, acho que pediu água. Sem entender muito bem, aproximei-me do filtro de cerâmica, abri a torneira, enchei o copo que entornou sobre as mãos. Aproximei-me e entreguei, indagando com o olhar. Ele segurou o copo com as mãos trêmulas, levou-o à boca e pediu que eu sentasse, ali perto, no banco que estava ao seu lado. Fiquei quieto, acomodado no canto. Não ousava aproximar-me, mas temia afastar-me. Sabia que havia alguma coisa que eu precisava saber, que não poderia deixar passar, como uma oportunidade de convivência insuperável. Então, ele falou. Voz trêmula, lábios umedecidos pela água, que escorria no canto da boca, como um visgo de lesma. _É a morte. Não me deixe aqui sozinho. Esta é a verdadeira morte.

Tive náusea da boca visguenta. Mas foi só por um momento. Sorri, tentando ser amável. Peguei-lhe o copo da mão, coloquei-o sobre a mesa e perguntei se não queria mais água. Não me respondeu. Ficou ali, parado, me olhando, querendo dizer coisas que não conseguia explicar. Ou talvez, quisesse apenas ouvir-me. As cantorias da casa ficavam mais intensas. Senti-me atraído por elas. Um cheiro de incenso inundava o ambiente, enchendo o corredor de fumaça. Tambores anunciavam um ritual mais dramático. Meu coração batia forte. Afastei-me um pouco, voltei-me para ele, a cabeça pendia. Devia dormir. Na porta, ainda apaguei mais alguns símbolos. Corri corredor à fora, na tentativa de não perder nem uma cena. Ao chegar na sala, ainda na penumbra, observei as pessoas meio sacolejando o corpo, acompanhando o ritmo. A vizinha girava sem parar no meio do grupo. Aproximei-me de minha mãe que perguntava onde eu havia andado. Não respondei. Arregalei mais os olhos, agora, hipnotizado. A vizinha continuava girando, sem parar, gritando frases desconexas, pedindo bebidas, fumando charuto e de repente, num grito abafado, quase sussurro, desaba no chão. Imediatamente tampam-lhe o rosto com um pano preto e um risco de pólvora é providenciado ao seu redor enquanto os atabaques funcionam com fúria e as pessoas cantam incessantemente, quase em gritos. Meus olhos de guri a tudo presenciava alarmado. Aquelas cenas tão distantes das que presenciava nos rituais católicos, me davam a impressão de um mundo cheio de mistério que adentrava, sem qualquer intenção, a não ser da curiosidade infantil. Minha mãe, ao contrário, adversa às cerimônias excêntricas, parecia afirmar consigo que jamais enfrentaria tais eventos. Saiu com o coração apertado, talvez. Eu, ao contrário, coração aberto, fluído, liberto, esquecido do homem da cadeira de rodas, do apagar dos sinais de giz, das travessuras de criança. Lembrava-me intimamente da figura obtusa de nossa vizinha, revirando-se no círculo de fogo produzido pela pólvora acesa. Meus olhos brilhavam, meu coração exultava. Minha imaginação voava.

Em casa, ouvi os gritos de minha mãe, não mais preocupada com o que presenciara, nem com a performance da vizinha, nem com o ritual intenso, mas com o meu próprio, que organizara, sozinho, no jardim de casa. A boneca de minha irmã incendiava, enquanto cantava canções tão parecidas com aquela que ouvira naquela tarde.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 23/04/2007
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