À uma mulher dentro do carro
Ainda não havia escurecido e eu caminhava distraidamente de volta para casa, pensando em não sei quais amenidades, enquanto instintivamente tentava escapar das arapucas planejadas para o pedestre na construção de Brasília. Não me sentia alegre nem triste, apenas carregava sobre mim o peso das muitas atividades por fazer. Andava, eis a palavra, automaticamente, bastante dessensibilizado com o mundo ao meu redor. Nem mesmo os carros que corriam afoitamente logo ao lado da calçada teriam chamado a minha atenção, se não fosse por aquele carro em especial que parou no sinal.
Passou por mim e parou no sinal, e por mera casualidade aconteceu de eu olhar para ele naquele exato momento e encontrar no banco de trás uma jovem mulher com os olhos voltados diretamente para mim. Olhava fixamente para mim e, como se não bastasse, olhava com candura. Mas antes que eu me desse conta de qualquer coisa, antes que eu pudesse reagir e impedir, o sinal abriu e ela endireitou o tronco, virando-se para frente, na direção em que o carro rapidamente, miseravelmente, sumiu.
Mulher desconhecida de dentro do carro, o que foi que lhe chamou a atenção no momento em que passava por mim? Sabemos que eu não sou nenhum tipo que, como vou dizer, se destaca positivamente em termos de beleza. No entanto, alguma coisa em mim despertou interesse suficiente para que você se voltasse a fim de ver melhor – e por Deus que aquele não foi o olhar de quem contempla um animal exótico. Conseguiste com isso me perturbar, porque é só isso que pode me trazer um desejo impossível de realizar, como este se tornou no instante em que aquele carro acelerou.
Há nesta cidade dois milhões e meio de pessoas e não creio que seja possível voltar a lhe encontrar algum dia desses. Talvez eu devesse ter chamado um táxi e falado “siga aquele carro” - porque uma chance dessas não se desperdiça. Talvez eu devesse, no mínimo, ter anotado a placa.
Ou talvez eu devesse não ter olhado mesmo.