VADIAGEM É CRIME?

Quando menino eu passava as férias escolares na casa dos meus avós maternos, na cidade de Coração de Jesus. Tínhamos, eu e meu irmão mais novo, muitos amigos e assim era divertimento o dia todo.

Nessa época a pequena cidade tinha um sargento, chefe de destacamento militar, que amedrontava todo mundo. Por qualquer motivo prendia e batia. Era o tempo que vadiagem era comatida severamente como contravenção penal; imaginem, se a pessoa não quisesse ou pudesse trabalhar, não podia sair de casa, sob pena de prisão por vadiagem. Um projeto para extinguir esse absurdo jurídico foi aprovado na Câmara e enviado para análise no Senado, onde tramita com passos de jabuti desde 2012.

A mudança tem o objetivo de adequar à legislação brasileira à realidade social e econômica. Parece evidente que a simples pretensão de punir aqueles que a sociedade já condenou à exclusão social, à fome e ao desespero revela uma crueldade insuperável em nosso ordenamento jurídico.

Mas, voltando ao assunto, certa noite, lá pelas 21 horas, já adolescente, com quinze ou dezesseis anos, fomos juntamente com mais três amigos para cima do “morro”, onde ainda hoje fica a caixa d’agua, e sob a luz do luar, começamos uma cantoria, que tenho certeza não incomodava a ninguém; devo esclarecer que não havia bebida na distração e nem balburdia, drogas então, nem conhecíamos.

Lembro-me bem, que eu trajava uma calça Lee, e uma camisa “Volta ao Mundo” igualzinha a do galã Francisco Cuoco na novela que passava na Globo, Selva de Pedra.

Pouco tempo depois chegou à polícia; quatro militares comandados pelo sargento, um negão ou melhor um “afrodescendente”, bicudo, barrigudo e de olhos esbugalhados, que impunha sua autoridade aos gritos. De arma em punho nos enfileirou e nos conduziu até a delegacia. Cinco garotos de 15 anos escoltados por policiais, como se fossem bandidos.

A caminhada era seguida de empurrões e tapas. Um dos militares, magrinho, ao empurrar-me pelo ombro, propositalmente rasgou a minha camisa e sorriu debochadamente. Fiquei revoltado, não só por ser levado para a prisão sem ter cometido nenhum crime, mas também por ter o militar rasgado a minha linda camisa “Volta ao Mundo”.

Quando passávamos por uma rua estreita, um dos nossos amigos entrou correndo pelo alpendre de uma casa, contudo, a porta estava fechada; ali mesmo ele foi covardemente espancado com cassetetes, socos e chutes pelos policiais, e arrastado até à delegacia. Sem nenhuma explicação fomos empurrados para uma cela.

Permanecemos naquela cela fétida, por mais de três horas. Alguns choravam e eram obrigados a engolir o choro sob ameaças de espancamentos.

O amigo que tinha sido espancado, encostou-se no canto da cela sentindo dores; ele usava óculos de grau do tipo fundo de garrafa e me veio agora à lembrança o seu nome, Expedito.

Algum tempo depois o meu avô chegou, certamente alertado por alguém sabedor do fato. Da cela escutei a sua voz forte indagando aos policiais sobre o acontecido; junto com ele chegou à esperança de sair daquele lugar imundo.

O autoritário policial prontificou-se imediatamente a nos soltar, mostrou a outra face, a da gentileza. A falsidade lhe saltava aos olhos. Logo nos conduziu a presença de meu avô e se desculpou por não saber que eu e meu irmão éramos seus netos. Ele se desculpou várias vezes com o meu avô que não lhe respondia. Era um “puxa-saco” de primeira linha. Bajulador asqueroso. O meu avô nos mandou sair e esperar na rua, pois iria conversar com o sargento. Assim fizemos e agauardamos por uns quinze minutos. Não ficamos sabendo o teor da conversa.

Não existia razão para sermos detidos. Qual o crime ou contravenção que cometemos? Tudo se resumiu num abuso de poder.

Meu avô era o prefeito da cidade e por certo arranjou uma transferência para esse militar. Não mais o vimos na cidade e nem sentimos a sua falta.

Lembrei-me desse fato devido na semana passada ao visitar um colega advogado, deparar-me com essa “autoridade” na ante-sala, a esperar para ser atendido. Acho que ele não me reconheceu. Estava velho, decadente, mal vestido. Assim que pude relatei o fato ao colega advogado. Ele deu uma gargalhada e disse-me:

É a vida meu amigo; como sempre cheia de altos e baixos, como uma estrada. O prepotente policial hoje não passa de um velho caquético, como você viu. É assim mesmo, quando em atividade sentem-se poderosos estando acima do bem e do mal; quando se aposentam ou reformam, caem no esquecimento.

Na verdade ninguém quer saber de juiz aposentado, general de pijama ou puta velha. Servem para quê?

O assunto foi encerrado com boas gargalhadas e cafezinho.