Obsoleto
Talvez seja o meu maior trunfo o fato de ser escritor não publicado, evitando, dessa forma, o risco de as minhas convicções serem aferidas e, de ser eu, irremediavelmente, proclamado obsoleto. Se continuar assim, minhas ideias irão permanecer em um dos escaninhos do museu das grandes novidades, sem necessidade de serem esmerilhadas, até perderem a sua essência, por conta de novos paradigmas da informação.
De qualquer forma, ofereço a minha cabeça à guilhotina, produzindo sopa de letrinha para uma humanidade que está de dieta. Explica-se: minha intenção é a de registrar o quanto eu, embora toda a torcida do Flamengo também aí se inclua, ando refletindo sobre o grau de obsolescência das coisas e conceitos que nos cercam. Tudo, atualmente, fica obsoleto cada vez mais rápido. Já se foi o tempo em que o seminovo tinha vez. Do ferro a carvão à máquina de escrever, passando por mimeógrafo enceradeira , anão de jardim e não sei mais o quê, a lista parece não ter fim. celular, então, nem pensar: comprou, virou obsoleto. Apareceu outro dia um indivíduo na internet defendendo a teoria de que o corpo humano está também obsoleto.
Não diferentemente, os conceitos vêm se apresentado de forma tão dinâmica, que já há algum tempo se pode ouvir alguém dizendo que comeu uma jaca decente, ou observar uma baiana evangélica vendendo acarajé com maionese. Esses são exemplos regionais que transmutam semântica e culturalmente, nessa mesma ordem, substituindo conceitos anteriores que passam a deixar de existir. não existe mais gente decente, imagine!
Mas a minha lide com essa desconstituição de valores é antiga. Observe que quando eu tinha aproximadamente dez anos de idade, veio-me a vontade de ver concretizados três desejos: deixar o cabelo crescer, comprar um fusca e, finalmente, ser professor. Por ser filho de militar, naquele período era praticamente uma heresia a prática do primeiro desejo.
Apesar dessa contrariedade, forças ocultas me garantiam a altivez de um Sansão. Mais tarde e já adulto, percebi o quanto estava obsoleta a política do corpo, usada para quebrar as estruturas, e acabei me resignando com uns poucos fios de cabelo que insistiam em descolorir. O segundo desejo não era só meu, mas de boa parte daquela geração. Mesmo os ditos comunistas, nutriam, apesar de veladamente, esse sonho de consumo. Belchior disse mais tarde, no final da década de 70 que "de carrão chego mais rápido à revolução". Não que fusca fosse, necessariamente um carrão, mas essa espécie de sofisma ajudou a diminuir a sensação de culpa pelo desejo da rapaziada. Mas o fusca deixou de ser fabricado, e isso, por incrível que pareça, me fez compreender que não existem verdades absolutas. De quebra, fiquei também sem satisfazer esse desejo, - meu segundo sonho de consumo também se tornara obsoleto.
Veio a maturidade e, com o pé literalmente na estrada (pela ausência automotora) e cabelo em desalinho, entrei na Universidade, após ter lido, recentemente, a Náusea, de Jean Paul Sartre. Nessa época, meus eus digladiavam por mim, enquanto eu tentava me apoiar num dos últimos pedaços de reboco do meu muro que insistia em cair. Ele representava o meu terceiro e último desejo; a depender do que acontecesse dali para adiante, eu poderia ser "um dito cidadão respeitado, ganhando quatro mil cruzeiros por mês", ou lutar todo o resto da minha vida contra a obsolescência orquestrada. Escolhi a segunda opção e, como num passe de mágica, ao receber o meu diploma, vi-me proprietário de um estranho cavalo que, não sei por que cargas d'água, resolvi chamá-lo de Rocinante.
Meu muro? Bem, meu muro caiu, mas aprendi a divisá-lo no espaço entre tantos moinhos de vento.