Minhas Marcas

Distraio-me com minhas reflexões. Com elas viajo distante de mim, à procura de coisas admiráveis e firmes. Assim vivo, afastado de qualquer desespero que possa tirar-me o sono. Fundir-se em abstrações não é só deixar o nebuloso das idéias do que se pensa. Nos vácuos do pensar, se produz alguma coisa, inverte-se o comum e tudo se torna interessante no seu próprio reverso. Um homem não deve caber no seu próprio vazio.

Nunca dos meus olhos caíram lágrimas de covardia. Antes caíram em excesso provenientes da imprudência, confesso. Estive em mim em todas as coisas que fiz, n’algumas delas desesperado, por mais erradas que elas fossem. Ainda que pensando antes de fazê-las, arquitetei-as de forma errada e quantas de minhas obras não se desmoronaram diante dos meus olhos agora lânguidos e carcomidos pela depressão dos vencidos.

Hoje, alimento as máculas, retrato fiel e bem mais forte do que minha desobediência para com o quase perfeito que sempre quis buscar no que fiz.

Sou como um grande gavião fêmeo: tenho garras fortes, unhas afiadas, asas potentes, mas, acima de tudo isso, um grande coração generoso de mãe que aprendeu a defender suas crias. Os vôos que dou são para proteger os frágeis seres que de mim dependem.

Quando olharem para o alto e me vierem passar nalgum vôo fora de hora, é nesse instante em que escondo o meu sagrado desespero em saber que preciso ser tão útil, caçar o alimento a todo custo, porque de mim, tantos outros, pássaros frágeis, dependem e esperam. Sou amigo dos tubarões saciados: imponho o respeito e o medo, sem jamais pensar fazer qualquer forma de ataque. Dentro de mim mora um imenso urso polar que só devora os peixes que morreram e estão às margens do lago; hibernar para mim é refletir sobre o homem e sobre a vida. O que mais me é convidativo nela é o amor fiel e responsável entre os homens que pecam sob tão grandioso e belo céu inocente. Procuro nesses pecados a inocência de nossa mais profunda culpa diante dos olhos do mundo, que nada mais são de que os dóceis olhos de Deus.

A vida, esse casulo agradável que guarda seus espinhos na cruz empoeirada guardada lá dentro no finalzinho do subsolo, serve como estrada para os passos de nossa consciência. Eu procuro aproveitá-la para andar bem. Tenho um compromisso para comigo mesmo de ser bom com os outros, desinteressadamente. Erro porque moro longe da perfeição, e as pedras enchem essa estrada e nos ofertam tombos. E daí? A queda também põe o corpo à frente de sua sombra e preenche o caminho.