Memórias do Estrangeiro
Depois que a ligação caiu, demorei a dormir. Fiquei confusa. Mas eu sou confusa. Hoje o sol apareceu - entre nuvens ainda. Vou dar uma caminhada na praia, ver gente, ler o jornal... Sair um pouquinho desse confinamento e buscar lugares, ilhas de equilíbrio.
Ontem fui ao grupo de terapia para pessoas que sofreram abusos e, aos poucos, vou percebendo que agora ouço muito mais que falo. Não tenho algo que me perturbe tanto quanto antes, quando não podia falar sobre. Ou algo que me incomode tanto a ponto de me expor mais que o devido, nem mesmo esse cão rosnando do passado, muito menos o cão que me vareja de presente. Mas estar entre eles, entre os que falam, também me faz desvelar um bem maior. Não deixaria de ir só por egoísmo do "já posso lidar com isso", pois ouvir o outro, os sons do outro, as palavras adormecidas entre durezas e as necessidade de sobreviver... Tudo isso tem me ensinado a buscar algo que talvez já morasse em mim: uma cumplicidade silenciosa, respeitosa, um silêncio respeitoso. Sinto que posso ajudar ouvindo e que isso faz realmente diferença... E essa descoberta dá a minha vida uma significativa possibilidade de compreensão do outro, de escuta atenta, afetuosa. Vou ficando comedida, eu tantas vezes sem medida. Sei bem quanto nos custa dar um passo a cada dia, um de cada vez. Sei que ainda me confundo, tropeço, caio e levando. Não tem outro jeito, eu preciso levantar todos os dias, levantar da queda, do escuro, do medo da morte etc. Mas ainda cometo contradições. E como bem disse o Jurandir Freire, ás vezes pode ser muito tarde para perdoar, eu vou tentando perdoar quem me puxa para o abraço do afogado, e tento esquecer quando possível. Assim percebo que vamos reaprendendo com as nossas falências, significando esses vazios, diminuindo o volume do barulho interno.
Então a gente que vive dentro da gente vai vivendo melhor, descobrindo novos tempos da fruta Vida. Tem um frase que eu gosto muito do Cyro dos Anjos que diz: "na verdade, as coisas estão é no tempo, e o tempo está é dentro de nós". A terra roxa que nos foi subtraída, deixando assim o solo seco sem água, vai criando uma vontade de plantio. É longo esse tempo do plantio, é Cronos e Kairós. Plantar, trabalhar a terra, sujar as mãos e não se achar sujo por isso, mastigar o capim do tempo, cantar a música do trabalho, esperar que surja o novo implante de terra, e ser nele, o exercício de viver o próprio movimento.
Pensei em fazer uma viagem. Todos me dizem para fazer viagens, embora eu já faça muitas. A mente pode nos levar a tantos lugares, assim como pode nos tirar de lugares de imobilismo. Mas viajar é olhar, viajar é o olhar do estrangeiro, é tirar férias do cotidiano e suspender-se como um trapezista, olhando do alto em seu balanço magistral que - de repente - vira um mergulho, uma entrega, um ir sem medo da volta. A melhor vantagem de ser estrangeiro é olhar e ver, olhar e não ver. Uma liberdade de arbítrio que te ensina e que dilui em pequena porções as versões originais. Logo sua identidade singular se amplia e se estranha, e se você ficar se verá para sempre como o Estrangeiro de si mesmo, por mais que se fixe, seu lugar é mover-se. O de "onde você veio" ficará num transe, colado ao "onde você está". Quando mais ficar mais será Estrangeiro, se ficar muito pouco, apenas turista.
Numa de minhas viagens para fora me deparei com o pensamento sobre uma preservação de identidade coletiva que corre contra a aculturação galopante desse mundo cada vez mais globalizado - "tão perto e tão longe", conectados e ao mesmo tão distantes do hoje e do que foi ontem. Tento entendê-los por um lado, mas não sei se também "reter" o quase inevitável: o novo do mundo- não pode vir a ser "o não querer viver a/na diversidade”. Afinal, viver com o(s) diferente(s) é adaptar-se a viver constantes estranhamentos, transformações. Acho que o velho mundo colonizador não se preparou para isso e "naturalmente" (sem movimento) preserva se preservando, talvez com aquele medo de ser invadido por velhos (também) - fantasmas. Acho que os imigrantes históricos, assim como os migrantes são pela natureza Estrangeiros. Estão em trânsito permanente, por isso se agrupam como quisessem preservar o perdido, o elo perdido. E vivem em saga.
Nas minhas viagens subterrâneas tenho aprendido desses sentidos com o outro, esse outro que diz quem eu estou sendo. Tenho mais compreensão que compaixão pela menina sofrida da minha infância, menos perdão e mais afeição. No grupo de terapia também somos todos Estrangeiros, cada qual com suas próprias viagens a narrar. E a narrativa ali renasce todos os tempos da Terra, as notícias chegam de lugares, os mais longínquos. As narrativas são veículos de cura e temperança. A voz que me acalanta é a voz que caiu comigo no mesmo precipício, mas diferente de Orfeu, por vezes voltamos com a nossa criança viva, respirando. E esse respiro é voz, é a narrativa desse Estrangeiro que sempre acaba de chegar, voltar e olhar.
Na porta de entrada da Terra Estrangeira colei um cartaz: Tenha uma boa estada nesta morada e aproveite bem o que for sentido... Vamos lá fora ver o mar?
Patrícia Porto
Depois que a ligação caiu, demorei a dormir. Fiquei confusa. Mas eu sou confusa. Hoje o sol apareceu - entre nuvens ainda. Vou dar uma caminhada na praia, ver gente, ler o jornal... Sair um pouquinho desse confinamento e buscar lugares, ilhas de equilíbrio.
Ontem fui ao grupo de terapia para pessoas que sofreram abusos e, aos poucos, vou percebendo que agora ouço muito mais que falo. Não tenho algo que me perturbe tanto quanto antes, quando não podia falar sobre. Ou algo que me incomode tanto a ponto de me expor mais que o devido, nem mesmo esse cão rosnando do passado, muito menos o cão que me vareja de presente. Mas estar entre eles, entre os que falam, também me faz desvelar um bem maior. Não deixaria de ir só por egoísmo do "já posso lidar com isso", pois ouvir o outro, os sons do outro, as palavras adormecidas entre durezas e as necessidade de sobreviver... Tudo isso tem me ensinado a buscar algo que talvez já morasse em mim: uma cumplicidade silenciosa, respeitosa, um silêncio respeitoso. Sinto que posso ajudar ouvindo e que isso faz realmente diferença... E essa descoberta dá a minha vida uma significativa possibilidade de compreensão do outro, de escuta atenta, afetuosa. Vou ficando comedida, eu tantas vezes sem medida. Sei bem quanto nos custa dar um passo a cada dia, um de cada vez. Sei que ainda me confundo, tropeço, caio e levando. Não tem outro jeito, eu preciso levantar todos os dias, levantar da queda, do escuro, do medo da morte etc. Mas ainda cometo contradições. E como bem disse o Jurandir Freire, ás vezes pode ser muito tarde para perdoar, eu vou tentando perdoar quem me puxa para o abraço do afogado, e tento esquecer quando possível. Assim percebo que vamos reaprendendo com as nossas falências, significando esses vazios, diminuindo o volume do barulho interno.
Então a gente que vive dentro da gente vai vivendo melhor, descobrindo novos tempos da fruta Vida. Tem um frase que eu gosto muito do Cyro dos Anjos que diz: "na verdade, as coisas estão é no tempo, e o tempo está é dentro de nós". A terra roxa que nos foi subtraída, deixando assim o solo seco sem água, vai criando uma vontade de plantio. É longo esse tempo do plantio, é Cronos e Kairós. Plantar, trabalhar a terra, sujar as mãos e não se achar sujo por isso, mastigar o capim do tempo, cantar a música do trabalho, esperar que surja o novo implante de terra, e ser nele, o exercício de viver o próprio movimento.
Pensei em fazer uma viagem. Todos me dizem para fazer viagens, embora eu já faça muitas. A mente pode nos levar a tantos lugares, assim como pode nos tirar de lugares de imobilismo. Mas viajar é olhar, viajar é o olhar do estrangeiro, é tirar férias do cotidiano e suspender-se como um trapezista, olhando do alto em seu balanço magistral que - de repente - vira um mergulho, uma entrega, um ir sem medo da volta. A melhor vantagem de ser estrangeiro é olhar e ver, olhar e não ver. Uma liberdade de arbítrio que te ensina e que dilui em pequena porções as versões originais. Logo sua identidade singular se amplia e se estranha, e se você ficar se verá para sempre como o Estrangeiro de si mesmo, por mais que se fixe, seu lugar é mover-se. O de "onde você veio" ficará num transe, colado ao "onde você está". Quando mais ficar mais será Estrangeiro, se ficar muito pouco, apenas turista.
Numa de minhas viagens para fora me deparei com o pensamento sobre uma preservação de identidade coletiva que corre contra a aculturação galopante desse mundo cada vez mais globalizado - "tão perto e tão longe", conectados e ao mesmo tão distantes do hoje e do que foi ontem. Tento entendê-los por um lado, mas não sei se também "reter" o quase inevitável: o novo do mundo- não pode vir a ser "o não querer viver a/na diversidade”. Afinal, viver com o(s) diferente(s) é adaptar-se a viver constantes estranhamentos, transformações. Acho que o velho mundo colonizador não se preparou para isso e "naturalmente" (sem movimento) preserva se preservando, talvez com aquele medo de ser invadido por velhos (também) - fantasmas. Acho que os imigrantes históricos, assim como os migrantes são pela natureza Estrangeiros. Estão em trânsito permanente, por isso se agrupam como quisessem preservar o perdido, o elo perdido. E vivem em saga.
Nas minhas viagens subterrâneas tenho aprendido desses sentidos com o outro, esse outro que diz quem eu estou sendo. Tenho mais compreensão que compaixão pela menina sofrida da minha infância, menos perdão e mais afeição. No grupo de terapia também somos todos Estrangeiros, cada qual com suas próprias viagens a narrar. E a narrativa ali renasce todos os tempos da Terra, as notícias chegam de lugares, os mais longínquos. As narrativas são veículos de cura e temperança. A voz que me acalanta é a voz que caiu comigo no mesmo precipício, mas diferente de Orfeu, por vezes voltamos com a nossa criança viva, respirando. E esse respiro é voz, é a narrativa desse Estrangeiro que sempre acaba de chegar, voltar e olhar.
Na porta de entrada da Terra Estrangeira colei um cartaz: Tenha uma boa estada nesta morada e aproveite bem o que for sentido... Vamos lá fora ver o mar?
Patrícia Porto