As Saias Vão Rodar.
Insatisfeitas e indignadas com o papel que, estupidamente, foi definido para elas desde o Iluminismo, as mulheres começaram a rodar as saias, provocando um tufão na sociedade machona, levantando a poeira para dar a volta por cima de sua própria condição, desde que Dona Freeman tocou fogo no sutiã.
As mulheres não admitem mais que, (em se tratando do bem e do mal, do racional e do irracional) só os homens sejam o racional.Não admitem mais que apenas eles devam produzir fora de casa. Sair e voltar à hora que bem entendem, nem pensar; nem mesmo cumprindo o seu papel de provedor, pater família, o sabichão de casa.
As mulheres não aceitam mais, apenas, o papel de reprodutora, mater família, obediente e servidora. Ainda bem. Porém, longe de mim querer tomar partido e entrar numa briga que não saberia sustentar, pois acho que os homens sempre perderam feio, como se diz. E, se fosse atrevido o suficiente para fazer reparos no pensamento de Augusto Conte, trocaria vivos e mortos por homens e mulheres, nessa ordem e assim: os homens sempre foram e continuarão sendo, cada vez mais e sempre, governados pelas mulheres.
Poliandra é um típico exemplo da mulher moderna. Empreendedora, culta, bonita, elegante, disposta, está sempre em atividade. Mãe de dois filhos, nunca sentiu as dores do parto porque fez cesariana. Não por problemas na gestação dos filhotes, mas por ser uma opção disponível; cara é verdade, mas indolor. Raramente tem tensão pré-menstrual, mas quando tem se transforma num terceiro sargento da Segunda Companhia da Primeira Brigada, comandando a carga da Cavalaria Ligeira. Quem já viu, tremeu de pavor.
Acorda cedo, engole qualquer coisa já com o telefone celular preso à orelha, como se fosse um enorme brinco falante, atravessa a porta ainda entre aberta, dando a impressão de que é capaz de fazer isso com qualquer parede que se atreva a cruzar seu caminho. Entre a porta da casa, onde eventualmente mora, e a porta do local onde invariavelmente trabalha, percurso que leva pouco mais de meia hora para percorrer, Poliandra já deu ordens, decidiu e tomou medidas inadiáveis, convocou reuniões, ganhou prestígio, e teve orgasmos com o prazer que sente quando ganha tempo antes mesmo de iniciar seu dia de trabalho. Ainda faltam 5 minutos para as 8 horas da manhã.
Já é noite quando Poliandra volta para casa onde eventualmente mora com o marido e os filhos e as empregadas. Quer saber tudo o que aconteceu nessas horas que esteve ausente, apesar dos telefonemas que deu, passando ordens e resolvendo pequenos conflitos domésticos. Cada cômodo é vistoriado, superficialmente, é verdade, depois de passar pela cozinha, examinar a geladeira e beber um copo com água ainda segurando a bolsa e falando ao telefone com algum infeliz subalterno. Com os filhos, tem atenção redobrada. Eles são a vida dela, a razão de sua existência, a melhor coisa que já lhe aconteceu antes mesmo de ter casado; simbolicamente, é claro. Conversa carinhosamente com eles, resolve problemas. Orienta para o futuro e para o dia-a-dia.
A escola, as roupas, os livros, a alimentação, as amizades, os amores, as decepções, os anseios, as esperanças, todas as dúvidas, todas as incertezas, são algumas das questões que a mulher-mãe ainda tem que tratar. Lá pelas 11 horas da noite, troca algumas palavras com seu marido e vai dormir. Exausta, recém saída do banho, deliciosamente perfumada com uma suave colônia, a pele macia e morna, perfeita para ser amada e coberta de sexo, Poliandra, porém, adormece para mais um dia de glória e de conquistas. Sonha o sonho realizado da vitória alcançada. Da libertação e da ocupação dos espaços antes reservados aos homens. Sonha em recall. É seu revival. É a dura e cruel constatação de que não agüenta mais esta vida, conseguida por seus próprios méritos e determinação. Sonha que está diante de um espelho e que sua imagem refletida adverte: “Você, querida Poliandra, conquistou seu espaço no mundo masculino. Agora você pode fazer e ter tudo o que eles têm e são e mais e melhor. Pode ocupar os mesmos postos que eles em qualquer empresa; ganhar os mesmos salários e às vezes até mais; ter a profissão que quiser. Lutar nas guerras, patrulhar as ruas e prender bandidos; pilotar aviões e comandar navios. Pode trabalhar no fundo das minas, arrancar pedras nas pedreiras, recolher o lixo nas cidades, dirigir fábricas, comandar homens em qualquer atividade. Chega de só poder ser professorinha primária, enfermeira ou cabeleireira; de só poder ser balconista, recepcionista, empregada doméstica ou freira; de só poder ser bailarina, cantora, atriz ou uma pobre e infeliz meretriz. Você pode tudo, querida Poliandra. Você não tem do que reclamar. Você só não pode deixar de ser o que você sempre foi: mulher! Mulher com útero, trompa de falópio, ovários e outras coisas que só nós temos como charme, dengo, balanço e gingado; jeito pra sedução, pro envolvimento sutil, pra meiguice e outras armas de extermínio. Não pode deixar de ter seu companheiro e de se unir a ele para gerar outros seres, elos da cadeia da vida, embora possa decidir o que deseja fazer e com quem. Talvez não seja fácil para nós continuarmos nessa competição que só nós desejamos. Talvez esse desafio que nos impusemos não signifique muito para os homens. Eles estão assustados, tremendo de medo e do frio do gelo de nossos corações e de nossos lábios. O que eles querem é poder nos amar irrestritamente e serem amados em retribuição.”
Poliandra acordou do sonho e do sono, sorrindo. Arrumou-se, engoliu qualquer coisa, deu ordens, fez recomendações e saiu vestida para matar, pois o show deve continuar, e ultrapassou a porta como num efeito cinematográfico.
(do livro Tem Gente)