NEGROS DIAS
... na prisão os dias escorriam frios, lentos e escuros. O tamanho da cela me fazia ter falta de ar. No fim do quarto dia colocaram outro prisioneiro na mesma cela. Afortunadamente meu companheiro era um amigo de longa data, militante do partido, professor e músico. De uma sensibilidade à toda prova, combinávamos não só na ideologia, mas no gosto musical e no conceito de justiça. Falávamos o tempo todo, falava para passar o tempo e esquecer ou procurar esquecer (impossível) que agora eu era uma prisioneira. Eu continuava com a mesma roupa do dia em que fui presa. Como tudo aconteceu de madrugada e a cidade que morava, Campina Grande, era fria, eu estava de agasalho. Meu amigo então tirou a camisa dele e me fez vestir. Gesto como esse só poderia partir de alguém com esse nome: Prof. Carlos Brasileiro.
Agora já nos entregavam alguns jornais. No primeiro que lemos, uma manchete: " Grupo de comunistas assaltam o Banco Paraiban". Dois dias após, ao perceberem que estavam cometendo um grave erro, voltaram a publicar: "Comunistas são presos ao picharem a cidade". Era a comemoração do aniversário do partido.
Com o passar dos dias nos trocaram de cela e fomos parar numa minúscula cela com telhas de amianto. O sol nordestino impiedoso tinha perdido para mim a poesia e virado mais um torturador. Nessa cela bem menor que a anterior decididamente era quase impossível respirar. O suor escorria permanentemente pelo meu corpo. Comecei a sonhar com um chuveiro... Mas queria um chuveiro enorme e bem geladinho.
Ironicamente recebemos mais um companheiro. Tratava-se de um agricultor de Alagoa Nova. Rimos ao ouvir o relato de sua prisão. Passando fome com seus seis filhos, teve a "brilhante" ideia de xerocar cédulas. Na primeira compra, como era de se esperar, foi preso. Difícil foi explicar a ele porque estávamos presos... Mas ele entendeu que nosso "crime" era bem maior que o dele. A partir daí iniciamos uma amizade. Nossos assuntos iam dos causos da parte dele e da nossa uma boa dose de poesia e noções de comunismo.
À noite não conseguíamos dormir. Gritos e pedidos de socorro nos impediam de conciliar o sono. Só depois soube que eram gravações com a finalidade de nos torturar...
Como estava incomunicável não recebia visitas. Sem saber como os meus filhos, pais, irmãs e amigos estavam reagindo a minha prisão, os dias ficaram absurdamente impossíveis de passar. As vezes chegavam pequenas porções de comidas vindas de fora e severamente revistadas. Lembro bem de um pacotinho com farofa de carne de charque... Nunca soube quem mandou... A única pessoa que conseguia romper a barreira era Dom José Maria Pires, carinhosamente apelidado de Dom Pelé. Ele tornou-se meu elo com a vida.
Decorridos dez dias meu advogado veio me visitar. Parlamentares de Brasília estavam chegando num voo fretado para tentar minha soltura. Foi o início de uma luta para que eu voltasse a minha liberdade. Depois de muita negociação, muito sofrimento, muita tortura, muita dor, veio a tão esperada liberdade. Onde passar esse primeiro dia tão especial de liberdade?. Muitos foram os convites, mas optei pelo convite de Miguel dos Santos, artista renomado em João Pessoa. No seu atelier, uma rede, uma gamela com frutas e muita ternura. Tantos anos depois, obrigada Miguel. Eu precisava tanto de tudo aquilo... Ainda guardo com carinho a tela que ele me deu nesse dia. Junto a sua assinatura esta escrito: "Obrigada Marly por sua luta que é também a nossa".
O tempo passou, nosso país mudou fruto de muita luta, muitos acertos e desacertos, mas ainda temos muito a percorrer. Em mim ainda vive forte o fantasma da ditadura que me marcou severamente no corpo e na alma.
Que os jovens continuem nossa luta. Emociono-me quando vejo o povo na rua. Bom sinal. O povo continua vivo e eu também.
Axé BRASIL!