Zeca Gás
José Olimpio Fortuna Abreu, o Zeca, mais tarde carinhosamente conhecido como Zeca Gás, desde que seu pai passou a ser distribuidor de gás na cidade de Mimoso do Sul, foi um dos grandes amigos de minha infância e juventude.
Juntos, formamos dupla e posteriormente o Trio Mimosense com que participávamos todos os domingos dos concursos musicais organizados pela ZYO-26 – Rádio Mimoso do Sul – falando para o Brasil e para o mundo -, cantando as músicas de Miguel Esteves Mejia, principalmente as estrofes de “Mira que luña”, que ensaiávamos em sua casa com o disco 45 rotações que ele possuía tocado em sua eletrola Telefunken, o máximo da época, por diversas vezes sendo premiados com os primeiros lugares.
Envaidecíamo-nos ao ouvirmos nossos nomes repetidos pelas garotas que compareciam em massa ao Clube dos Operários onde nos apresentávamos, bem mais pelo charme especial de Zeca que por nossos dotes de cantores e intérpretes, o qual, bem mais que eu, arrebatava seus corações. E íamos ao delírio, ao informarem o resultado do concurso, em que sempre éramos premiados.
Crescemos e estudamos juntos desde o grupo escolar, apesar de nunca sob os mesmos professores e em mesmas salas, comendo os doces feitos e vendidos por Dona Odília na hora do recreio, sempre guardados e a nós apresentados em uma lata de biscoitos retangular, azul com detalhes de um paisagem rural, lembro-me bem. Isto decorria, talvez, de nossas famas de irrequietos e bagunceiros, com os professores insistindo em nos manter separados, em salas distintas.
Éramos amigos inseparáveis, participando das rodadas em que jogávamos sete e meio na casa de José Luiz e Adilson Vivas, apostando as carteiras de cigarro vazias que colecionávamos. Por varias vezes, também, arriscamos a sorte nas barraquinhas de roleta montadas para a festa da cidade, com mil estratagemas previamente preparadas, até sermos flagrados por seu pai, seu Nhonhô, que nos proibiu de continuarmos participando da jogatina, já que ainda não tínhamos atingido a maioridade.
Juntos, estudamos e nos preparamos para o concurso do Banco do Brasil, sendo ambos aprovados, eu em primeiro lugar no concurso regional e ele logo abaixo. Como eu também fora aprovado para a Álcalis e para a Petrobrás, seguimos carreiras profissionais distintas, ele ingressando no banco e eu naquelas outras, no banco por somente um dia, já que “para melhorarem o nível cultural do nordeste”, segundo eles, nomearam-me para Serrinha, na Bahia, onde cheguei pela manhã e saí à tarde.
Em nossos tempos de ginásio, durante algumas vezes estudamos nas mesmas classes, sempre “aprontando nossos causos”, como o que ora passo a relatar:
Em certo dia, levei comigo para o colégio um pedaço de corrente prateada, de mais ou menos uns trinta centímetros, extraída de um baleiro do bar de meu pai. Zeca, ao vê-la, teve a feliz ideia de extrair um fio de sua meia então desfiada, o qual, por muito fino, ficava praticamente invisível quando esticado, amarrando em uma das pontas a corrente e passando-o pelo trinco da janela.
Devidamente paramentados, com as gravatas de nossos uniformes colocadas em nossas cabeças, como se bandanas, sentamo-nos ao chão e, enquanto eu com um lápis à boca como se fosse uma flauta indiana a tocava, ao som de “fi-fi-ri-fi-fi”, Zeca disfarçadamente puxava a ponta do fio, fazendo com que a corrente fosse subindo, como se uma cobra naja, rebolante. E formou-se um círculo a nosso redor para observar a proeza e não observamos que Leda Mariano, nossa professora de inglês já se encontrava em sala e com a aula já iniciada.
Incontinente, como sempre, ela nos expulsou da sala e nos mandou para a secretaria, para mostrarmos ao Seu Clóvis, Diretor, e para lá fomos, angustiados. E ficamos a aguardá-lo, sentados ao chão. Tão logo ele chegou e constatou que mais uma vez ali estávamos e antes mesmo que nos “suspendesse e mandasse para casa até segunda-feira”, como era de seu costume, começamos a executar nossa teatral apresentação, exatamente como a original, bandanas na cabeça e com Zeca puxando escondido o fio e eu tocando a flauta e a cobrinha subindo e descendo ao som dos acordes.
Por um bom tempo seu Clóvis ficou ali a olhar nosso desempenho, sem entender exatamente como era feita a “mágica” e, desalentado, daquela vez, permitiu-nos voltar para a próxima aula, sem que fossemos suspensos, para nosso alívio.
Tempo depois eu parti em busca de meu destino distante de minha cidade e nunca mais nos vimos, sabendo que veio a falecer, ainda novo, vitimado de mal que o acometeu, aos cinqüenta e dois anos, com tanto ainda a aprontarmos. Partiu, deixando no ar um quê de saudade dos bons períodos curtidos, de uma enorme amizade. E, sempre lembrando-me deste grande amigo, em noites de lua cheia, por vezes, me surpreendo a cantar como antigamente – mira que luña, mira que cielo, estoy tan triste...