A QUEIMA ROUPA

Cansei de ser tolerante, quero latente e !urrante! a falta de tolerância dentro de mim. Apelarei para aquilo que acredito e nada de acordo descabido ou pernicioso. Passarei a agir do meu modo, sem regras, exceções ou deixar de fazer algo porque poderei estar subvertendo a ordem estabelecida.

Toda vez que passar por uma cidadão direi "Oi, bom dia, tudo bem com você? Posso te ajudar em algo?", por mais que digam que esse ato de nada vale nesse mundo contemporâneo. Se encontrar uma pessoa mais idosa que eu em qualquer estabelecimento comercial querendo pagar uma conta ou coisa do tipo, cederei meu lugar e não terei de perder mais tempo porque pude exercer minha cidadania.

Andarei pela mão certa e, certamente, respeitarei as faixas de pedestres, estacionarei o carro onde for permitido para que não prejudique a ordenação locomotora da cidade. Terei paciência com os semáforos e com aqueles que desejam sair dos estacionamentos.

Quando cruzar com você que me conhece e finge não me ver, ficarei de cabeça bem erguida, te farei vergonha, tentarei te dizer pelo olhar que você não é melhor que eu, eu não sou pior que você e, na minha falta de tolerância, estarei desejando toda felicidade do mundo e cura para o seu recalque. Seu que seu coração é líquido, como é líquida toda essa sociedade contemporânea transmissora de vírus e bactérias individualistas, oportunistas, consumistas, depressiva e construtoras de seres introspectivos, fadados ao suicídio social, ao isolamento e enfermidades sem cura.

Cansei de ser tolerante, verdade, acreditem. De hoje em diante, usarei minha rede social somente para levar alegria àqueles que vivem solitários, esquecidos, do outro lado da tela esperando ajuda, uma mão amiga, uma palavra de sensibilidade. Aqueles que sonham com amore virtuais, com amizades à distância, que apelam e são felizes com a desgraça dos outros. Recusarei compartilhar pornografias, dores de amor, brigas de vizinhos, cenas trágicas, vídeos envolvendo crianças e adolescentes, fotos de pessoas estigmatizadas por estarem acima do peso, por serem negras, banguelas, suburbanas, dependentes de drogas lícitas e ilícitas ou doenças degenerativas.

Caso ligue uma rádio e nesta estiver tocando uma dessas músicas que tratam a mulher como mercadoria de abuso e exploração, ou tenham uma letra que não tenha boa moral ou ética, ou mesmo que venha a ferir o direito de ser cidadão do próprio cidadão de direito, não permanecerei nela, desligarei e passarei a criar grupos seletos, de músicas seletas, de pessoas seletas.

Quero sim, quero a intolerância dentro de mim. Não permitirei mais ser senso comum, viver em grupo ou com um bando de seres insólitos, insípidos, inodoros, inóspitos, indelicados, cheios de amarguras, de sangue frio, de desejo de vingança e enjaulados dentro de mundos construídos por vento, com tempo de nada, fadados ao abandono ou ao isolamento.

Pelo menos assim, deixarei um legado ao mundo que sou eu, não fui igual a todos, não me deixei trapacear pelo consumismo, não aceitei que criassem minhas rédeas.

Cansei de ser tolerante, ter vinte calças, cinquenta camisas, oito pares de tênis, só comer sanduíches multinacionais, a cada mês ter uma aparelho celular novo ou para satisfazer ao meu ego, ter ao mesmo tempo celular última geração, tablet, notebook, computador em casa, porque não tenho de pensar no meio ambiente, na vida das gentes, e para existir necessito de consumo.

Custa-me decidir, mas não quero mais, chega, a tolerância me irrita, necessito de sair da normalidade. Agora serei intolerante, único, diferente, trarei para mim as dores do mundo, serei mundo, construirei uma albergue dentro do meu coração, antes que uma bala perdida, tolerante, das mãos de um sangue frio, de um olhar calculado, possa, de forma numérica, cravar em mim, toda ira de uma sociedade conivente com mais uma morte, abrir a boca e dizer: morreu, foi? Já foi tarde, boa coisa não deve ter feito... Cansei, cansei de ser tol....e.r.r.a.n.t.e..

(Marcus Vinicius)