Minha Francesa da Lapa

Talvez seja o clima sórdido e inebriado que me atraia para um bairro decadente como a Lapa. As vias sujas, os cortiços abundantes da Rua Riachuelo, as cabeças de porco, a boemia intensa - porém decrépita - dos malandros de terno encardido e dos cigarros Yolanda nas noites quentes mesmo no inverno, exercem-me um fascínio descomunal.

Foi na Rua dos Inválidos que eu vi, pela primeira vez, Renée Bourdon. Chamou-me muito a atenção, enquanto eu caminhava, a sua longa piteira de marfim amarelado, a renda que usava, o carmim nos seus lábios de finos traços e a pele alva, como de quem há muito não sente o calor do sol transparecer as faces.

Não poderia falar-lhe, e mesmo admirá-la era, para mim, algo constrangedor, de forma que prossegui andando, mais rápido e, ao passar por ela, como uma rajada de vento, pude sentir seu perfume discreto, ainda que um pouco doce.

Na segunda noite, pensei em desviar meu caminho, mas a imagem daquela mulher fez-me novamente passar pela Rua dos Inválidos. Vi-a debruçada no parapeito da grande janela frontal de um sobrado pintado em tons amarelos, com uma grande porta de madeira, aos pés da qual, na soleira, viam-se alguns pedaços de cerâmica portuguesa bastante gasta. Senti um ímpeto enorme em lhe dizer algo, qualquer coisa, mesmo uma bobagem como “boa noite”; mas não pude abrir a boca e, olhando para o chão, passei rapidamente por baixo dela. Não sei se me notou.

Na terceira noite, estava decidido a falar-lhe, entretanto não pude encontrá-la nem à rua, nem à sua janela, sucedendo-se o mesmo, nas noites subseqüentes. Decidi que seria melhor esquecê-la, tanto por eu acreditar ser absurdo aquela fixação, como por senso de ridículo.

Mesmo assim continuei a passar dia a dia por aquela rua, talvez apenas por insistência, ou pela falta de um itinerário melhor. Algumas semanas depois, numa noite de quinta-feira, voltei a reencontrar Renée, recostada à porta de sua casa, como da primeira vez.

Com toda a timidez que me era inerente, fui ter com ela, apreensivo de que poderia não vê-la novamente por mais algum tempo. Entretanto, seu sorriso quase materno, acolhedor; sua expressão de alegria e a sua facilidade não me estranharam, pois, na verdade, tudo aquilo já era esperado por mim.

Conscientemente, deixei que Renée falasse sim, como de praxe. Puxou-me, então, sempre sorrindo, pelo braço e como se eu fosse um velho conhecido, um grande namorado, recolheu-me para sua casa. Do piso português gasto, passamos para a rangente escada de ébano – remanescente dos tempos nobres da Lapa imperial e, logo estávamos num grande cômodo à meia-luz, com janelas abertas pra rua de paralelepípedo, e uma luminária de cetim apoiada num móvel de madeira bastante enegrecido.

Renée amou-me como nenhuma mulher antes fizera. Amou-me tão intensamente como eu nunca achei que fosse possível, tão passional como se tivesse esperado por mim durante toda uma vida, tão profundamente como se eu fosse o único. Amou-me enquanto durou a luz ébria da lua, até descartar-me junto com os primeiros raios da alvorada do dia seguinte.

E ela nem mesmo precisou saber o meu nome.

Escrito em 18/08/2006

Luiz Octavio Oliveira
Enviado por Luiz Octavio Oliveira em 01/12/2013
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