O estranho amor de Moacyr

E daí que de repente Moacyr percebeu que era aquilo tudo mesmo, mesmo. A Zona Sul inteirinha, a Cidade, o Subúrbio. A Tijuca... ah a Tijuca, o Andaraí, a Aldeia Campista. A Ilha. A Gávea. A Gamboa.

Quantos habitantes teria o Rio em 1951? Um milhão, dois milhões? Ele não saberia. Na última quarta-feira, ele rompera com Claudinha.

Moacyr tinha lá seus rompantes de jovem, mas era incurável, apaixonado, dedicado e ao mesmo tempo obsessivo e metódico. Sufocava Claudinha. Era, na realidade, uma relação claudicante, trôpega e bêbada. Claudinha não se importava muito com ele, e Moacyr sofria: passava noites em claro, dirigia em disparada, fazia promessas e serenatas à sua janela, ia às missas, pedia, fazia promessas.

Ela, um dia, o aceitou – para ela, por insistência, para ele por amor. Os amigos achavam-na estranha, taciturna e misantropa, ao mesmo tempo em que a achavam anódina e sem graça, sem assunto, sem interesse. Era como as pernas de Vivian Blaine: simplesmente pernas.

Ele a achava linda, com o mistério de Lupe Velez, os olhos de Bette Davis e a boca carnuda de Alice Faye. Os cabelos volumosos, aloirados (eram escorridos, pretos), uma graciosa pinta do lado (uma verruga!), e olhos azuis como o mar que ele contemplava da janela (não tinham, propriamente, uma cor, eram como a água do Rio Joana).

Manteve-a em segredo dos amigos por um tempo: queria-a somente sua e cuidava dela como uma caixinha de joias, como um botão de rosas, como um livro querido. Daria-lhe tudo – mas ela não pedira nada. Projetava para si próprio e para ela uma vida feliz, tranquila, digna de funcionário público, com almoços em domingo de louça branca e um apartamento enorme - só para os dois. E de vez em quando ela cantaria boleros para ele. Mas ela, talvez, não quisesse nada daquilo. Talvez, não quisesse nada.

E os filhos, depois – as pequenas briguinhas de amor, o café e o cigarro nas manhãs, os passeios em Petrópolis e as festinhas do ano bom. Ah, Copacabana! Copacabana seria só para eles – Toda a Zona Sul. Ela morava no subúrbio.

Claudinha, um dia, o aceitara: esse era o maior privilégio de sua vida! Mas a cada novo encontro, era como se abraçasse uma almofada, como se beijasse uma massa de pão, como se segurasse um folheto. Claudinha, ao que parecia, não se interessava pela vida. Era sozinha, em seu mundinho fechado. Não se importava, nem com ele, nem com ela.

Ele também era sozinho, mas nos seus milhões de amigos, nas rodadas de críquete das terças, nos jantares de domingo e nas reuniões de sábado. Os amigos não compreendiam – pois ele parecia tão feliz. E não era.

Um dia souberam que ele andava por aí com Claudinha. Os amigos ficaram horrorizados: para que tudo isso? A maluca do Méier – apelidaram. Alguns colocavam-lhe a mão no ombro e diziam que ele merecia coisa melhor. Com o tempo, foram aceitando, mais por amizade a Moacyr do que por complacência à Claudinha.

Mas o caso é que ninguém mais do que ele sabia que Claudinha não o desejava, sequer pensava nele: só ao certo não compreendera porque é que o aceitara assim, tão candidamente como quem aceita uma bala. E ao mesmo tempo porque era tão refratária aos seus carinhos. E ele tinha tanto medo de perdê-la. Ela seria a única.

E então na última quarta-feira estava chovendo muito. Moacyr saiu mais cedo do escritório e foi para casa. Algo lhe afligira muito e, no fundo, não achava aquela situação direita. Antes das cinco horas pegou o Citroen e saiu em direção à cidade. Na curva do morro da Viúva pensou em desistir de tudo – e se conformar com o modo como as coisas estavam. Alguma parte dele, no entanto, o mandava avançar. Seguiu pela praia do Flamengo, pela Beira-mar e passou pela Praça Paris. Tinha vontade de chorar e um gosto de arrependimento próximo que lhe invadia a boca. Acendeu um cigarro e entrou pela Rua México. Chegou à Praça São José. Eram cinco para as seis quando dobrou pela Nilo Peçanha e, na quase esquina da Antonio Carlos aguardou pacientemente.

Os minutos se passaram enquanto via dezenas de pessoas saírem calmamente do prédio do Jockey. Por último, para ele, veio Claudinha. Ele acenou com a mão, encostado no veículo ela se dirigiu a ele, sem sorrisos nem olhares. Aliás, parecia que Claudinha sempre olhava para baixo.

- Entra.

Claudinha entrou no carro e eles partiram em direção à zona Norte. Claudinha pode ter se sentido surpresa, pois geralmente eles saiam para jantar, mas se assim foi não se soube, porque ela não demonstrou reação. Moacyr mantinha-se em silêncio.

Cruzaram a Candelária, entrando pela Presidente Vargas.

Um turbilhão de pensamentos vinha à cabeça de Moacyr – ao mesmo tempo que ele não sabia o que dizer – pois afinal de contas, tinha muito a falar. Nunca, de fato, entendera aquela situação toda e o mais leve que poderia dizer era que não a compreendia, mas que a amava. Que sabia que ela não o queria, mas que ele a aceitara assim mesmo – mas que agora deveriam pôr um ponto naquilo tudo.

Entretanto, continuava em silêncio.

Houve uma freada brusca logo após a Favela do Esqueleto. Alguns carros bateram logo à frente. A súbita parada lhe arrancou um pigarro da garganta e então ele começou da maneira mais franca possível:

- Olha Claudinha, acho que talvez... mas veja bem, talvez... não devamos mais nos ver... por um tempo talvez, e..

Claudinha o interrompeu e quem sabe pela primeira vez ele ouviu sua voz.

- Esta bem. Olhe – apontou para uma birosquinha, à direita, no pé do morro - preciso comprar algumas coisas. Vou saltar aqui mesmo. Entendi tudo, boa sorte e adeus.

As palavras de Moacyr morreram todas em sua boca, na ponta da língua. Sua vontade era a de chorar. Mas ele viu que não valia a pena. Acenou com o braço para fora, indicando que viraria à esquerda. Pegou o primeiro retorno pela São Francisco Xavier e rumou o Citroen novamente para a Zona Sul. Em um segundo, passou da situação de sozinho-acompanhado para a de simplesmente-sozinho.

Ele então olhou para fora do carro pela primeira vez em anos. E contemplou a grandeza de sua cidade, das milhões de pessoas que estariam à sua espera. E sorriu: o Rio era tudo aquilo mesmo.

Luiz Octavio Oliveira
Enviado por Luiz Octavio Oliveira em 01/12/2013
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