Seu Lucídio
Hay gente que tem calmaria nos olhos. O mundo apressado, cheio de barulho, confusão, sem tempo para um joguinho de cartas e um bom chimarrão passa longe dessas pessoas. Elas querem sossego, tranquilidade, descanso, contato com a natureza e convívio com a família.
Seu Lucídio é dessas pessoas tranquilas e simples, que olha a vida com olhos de calmaria. Nasceu em 19 de dezembro de 1912 e recebeu o nome de Lucídio Francisco Pereira, casou-se com dona Emília aos 26 anos e teve 10 filhos. Vem de uma cepa de gente forte e se acostumou desde muito cedo a trabalhar. Andou por vários lugares, inclusive na Argentina, fazendo e ensinando a fazer fornos para secar a erva-mate. Conta que estudou pouco porque a escola era longe, mas sabe ler e escrever.
Quando foi perguntado sobre a receita para viver 100 anos, respondeu: “É preciso ter saúde. Muita gente se queixa que tem dor de cabeça, eu nunca tive isso. Eu me sinto igual como quando eu era mais novo”. E acrescentou: “Eu fumei. Comecei a fumar por sentimento, quando perdi um irmão. Mas deixei de fumar. Tem gente que precisa de remédio, eu não. O vício, a gente governa ele, não ele que governa a gente”.
Ele não usa óculos, a pressão arterial está boa e no café da manhã se não tem carne, come ovo frito. Durante nossa prosa, os olhos ficaram um pouco apagados quando disse sentir saudades dos filhos e da esposa (já falecida); quando falou do roubo de algumas cabeças de gado, “Ladrão tem bastante. Morre um, nascem dez. Toda a vida teve”; e quando fez referência à tragédia ocorrida em Santa Maria (É, o seu Lucídio está atento), “A gente pensa muito nos desastres que hay hoje. Aquilo lá, em Santa Maria... é muito triste morrer duzentas e poucas pessoas”.
Para uma pergunta até simplória, “O que o senhor quer deixar de mais importante para os netos e as netas?”, respondeu com profunda sabedoria: “Quero deixar a liberdade e o querer bem, porque gosto de todos de jeito igual.”
Depois, com ar de saudade falou um pouco sobre algumas coisas que já não se veem mais com facilidade: os fornos que fazia, o pilão para socar arroz, milho, canjica e, achando graça, fez uma referência ao nascimento de Santa Rosa, “Era uma vilazinha, o que tinha mais era unha-de-gato”. Questionado sobre o crescimento do município, exclamou, “Barbaridade, cresceu, cresceu muito, tem lugar aí que eu nem conheço!”.
Aos 100 anos, sentado na área de sua casa, em Linha Boa Vista, acompanhado por um filho, a nora, uma filha, uma neta e um neto, seu Lucídio demonstrou estar satisfeito com a vida, falou dos netos, bisnetos e da vontade de chegar a ser tataravô. E fez uma revelação. Contou que aprendeu com seu Basílio Gomes a fazer passe e rezas para curar, “Enquanto eu posso falar legal, eu faço, porque é minha obrigação, não cobro nada”.
A tarde de sábado já começava a cair quando nos despedimos e deixamos seu Lucídio em companhia da família. Trouxemos as palavras, as fotos e, é claro, a bênção desse centenário que tem olhos de calmaria e luz, afinal, vamos nos render ao que escreveu Simões Lopes Neto, na lenda da Boitatá, “Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.[...] . Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos.” Os olhos do seu Lucídio tem arrancos de paz.