Vincent amava tempestades

Após uma longa temporada em Amsterdam, Vincent voltou à sua terra natal e se entregou a uma tempestade. O vento e o granizo castigavam-lhe o corpo nu, ferindo sua carne, mas a dor que ele sentia era como se a vida lhe dissesse é para já, só mais um minuto e sentirá o romper da membrana que te contém, o derramar do líquido que por dentro te queima, e você, chuva, vento, raios e trovões serão um só. E ele já se rasgava com as unhas, já se adiantava ao que tinha que ser: livre, livre, livre! – e o arder das feridas era como se a vida lhe gritasse é agora, não haverá mais contenção, nenhum dique, nada que impeça a livre composição, a mistura perfeita do de dentro com o de fora: furor com furor, grito com grito, amor com amor, verdade com verdade.

Vincent amava tempestades. Seu espírito delas se alimentava, com elas dialogava de igual para igual. Não se dava bem era com dias de sol, caminhos iluminados, placas indicando, proibindo, determinando: Por aqui, vire à direita. Não faça isso, cuidado. Sorria, mesmo que por dentro chore. Estenda a mão, cortês, ao inimigo, mesmo se quiser matá-lo. Vá a festas e eventos que não te atraem, só para cumprir o social, e não diga aos outros nada que magoe, envergonhe ou entristeça. Sorria a maior parte do tempo e balance a cabeça aceitando, concordando. Se falar, elogie, agrade. Contenha-se. Tranque-se. Reforce bem sua barragem, ela não pode romper.

Em Amsterdam, Vincent quase se entregou. Foi numa ponte sobre o Prinsengracht, um dos mais belos canais da capital holandesa. Abriu os braços e sentiu a cidade (ela própria uma tempestade, livre, livre!), seu espírito, sua fé, sua arte, seus fantasmas: Rembrandt, Van Gogh (que também era Vincent), Anne Frank...

Foi por pouco.

De volta ao seu país, não se conteve: quebrou vários códigos de civilização: disse o que pensava, fez o que sentia, gritou, bateu. Mas, sob pressão, logo se fechou de novo, trancou-se, e nesse trancar-se, encolheu-se, murchou como murcha uma rosa sem água esquecida num canto qualquer, ou uma coroa de flores abandonada na campa de um túmulo.

Pouco tempo depois, ao sentir que uma grande tempestade se armava sobre a cidade, Vincent decidiu...

Hoje ele é livre... É vento, chuva, raios e trovões.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 29/11/2013
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