Lembranças da minha infância na Mêda- Av. Estados Unidos da América
Lembranças da minha infância na Meda
Avenida Estados unidos da América
A rua onde eu nasci e morei até aos meus doze anos não tinha nome, hoje chama-se Av. Estados Unidos da América, nome justamente merecido, não pela humanidade do país que representa, mas pela sua grandeza, porque ampla e larga era a minha rua também.
Vou tentar descrevê-la de costas para o campo de futebol pelo seu lado direito.
A primeira casa inacabada encontra-se tal como a conheci na minha infância, era uma construção moderna para a época, erigida pelo Sr. Abílio das Águas, também proprietário do edifício dos correios. O Sr Abílio era um homem de semblante sério, de corpo atarracado e apresentava uma leve calvície. Passava de vez em quando pela taberna de meu pai e eu mesmo o servia com meio quartilho de vinho que ele saboreava com bastante desenvoltura. Nunca vim a saber qual o motivo porque esta obra alicerçada para ser uma bela construção ficou parada no tempo, e também era difícil para mim, compreender porque sendo o Sr.Abílio um empresário e um grande empreendedor para a época, conhecedor do ramo de construção civil, de marcenaria, do rompimento de estradas, deixou esta obra inacabada. Teria lá os seus motivos com certeza.
Na segunda casa morava o Sr Secundino Esteves e sua esposa Sra. Eduarda. Tiveram uma penca de filhos, uns cinco ou seis. Três ou quatro cedo emigraram para a África, mal os conheci, mas as duas filhas mais novas, a Amelinha e a Cilinha eram da nossa infância. Gente muito temente a Deus, eram muito religiosos e assíduos freqüentadores da igreja. A bondade da senhora Eduarda ela a extravasava ao tentar ajudar os mais necessitados, e todos aqueles que batiam à sua porta procurando apoio, ou material ou moral, não sairiam dali de mãos a abanar. O Sr. Secundino Esteves era marceneiro, mas um marceneiro entalhador. Vários entalhes em portas de entrada podem ser vistos ainda hoje, onde podemos vislumbrar a alma de artista.
A casa da esquina era a moradia da Dona Graziela e do Dr. Godinho. Acredito que em 1950 eles já moravam ali. Foram duas figuras memoráveis para a minha querida Meda. Após a segunda guerra mundial a fome grassava em muitos lares portugueses e um dia por semana a Dona Graziela distribuía sopa, não só para os pobres da vila, mas para outros que por ali estivessem de passagem. Não me recordo exatamente do dia, se quarta ou quinta-feira, mas num destes dias a fila dobrava a esquina do armazém do Sr Almeida e a sopa nunca faltava até que o último fosse servido. Um assíduo freqüentador da ementa era o Menana. O Menana era um andarilho que ninguém sabia a sua origem, simplesmente aparecia. Falava-se que ele foi um estudante de Coimbra, por sinal um bom estudante, que morrendo de amores por uma rapariga de classe mais baixa que a dele e não sendo consentido por seus pais, abandonou os estudos e ficou louco. Cantava como ninguém fados de Coimbra.
Quando ele chegava a criançada se encarregava de dar a notícia para ouvi-lo cantar.
O Dr. Godinho era um homem baixo, franzino, cabelo alourado, de olhos azuis cerúleos que ostentavam óculos de vidros redondos e hastes metálicas. Andava sempre bem alinhado, de fato e gravata e umas botas pretas ou castanhas sempre bem engraxadas. A profissão o obrigava a este tipo de indumentária, ele era o representante máximo do cartório de registro civil e às vezes representava também o juiz quando este faltava ou era transferido. Era um homem bom. Por vezes se aconselhavam com ele e então orientava as pessoas sem nada cobrar. Recordo-o em várias etapas da minha vida. Na minha meninice estou-o observando nas horas de lazer, agachado brincando com os seus dois cãezinhos Fox Terrier, arremessando algum objeto para que eles o trouxessem na sua mão, ou armando as sua arapucas para pegar pintassilgos que ele gostava de ter em suas gaiolas. Acompanhei o seu envelhecimento porque mais tarde fui ser seu vizinho numa outra rua, eu já com dezenove ou vinte anos e ele beirando já os oitenta, de passo bem miudinho, sentava no banco do jardim do tribunal, já com incontinência urinária, olhando para sua genitália balbuciava: “ ah puta.... puta quando eu era novo davas-me cabo da carteira agora dás-me cabo das botas”. Dizem que o Dr. Godinho sempre foi muito mulherengo. Talvez por esse motivo o Silva, seu futuro genro nunca entrou em sua casa para namorar a sua filha. Estou vendo o casal, ela na janela e ele na rua em noites de Inverno rigoroso, com neve e às vezes geada, possivelmente com torcicolo, provocado pelo olhar repetitivo para cima, embrulhado num cobertor que ela antecipadamente lhe jogara.
Entre a moradia do Dr. Godinho e o armazém do Sr Almeida passava a rua do Sr. Bom Jesus que morria exatamente em frente da estação de serviço do Toneca Consciência.
O armazém era um local onde o seu proprietário tinha os lagares para a feitoria do vinho e onde guardava outros pertences laborais que lhe serviam na agricultura, pois o Sr. Almeida era uma pessoa abastada para a época, possuidor de muitas propriedades.
A seguir vinha a alquitarra (alambique) do mesmo dono. Era uma destilaria muito antiga que processava o bagaço de uva que gerava a aguardente bagaceira . O seu timoneiro era o Arnaldo da Veríssima, um homem alto e forte de olhos azuis e cabelo ralo que ficava a noite inteira pondo lenha na fornalha, e não descuidando da parte técnica da fabricação da aguardente que ele de vez em quando bebericava feito um enólogo.
Eu e mais alguns amigos entrávamos ali para nos aquecermos à beira do fogaréu e por vezes ajudávamos a puxar o cango a título de brincadeira.
Encostado começava o muro da Senhora Prazeres Moitas, feito de pedra de granito já coberta de musgo que terminava meio arredondado na parte de cima em toda a sua volta. Lá dentro estava construída uma casa de moradia, a plantação de uma horta com couves cebolas, alfaces e outras verduras bem como algumas videiras plantadas em latada. O muro não era muito alto porque a miúde a gente o pulava rapidinho para pegar a bola de farrapos e meia que algum chute sem pontaria a lançara. Às vezes era mais rápido pular para fora, atiçados pelo cabo da vassoura da Senhora Prazeres.
Descrever o que vem a seguir é para mim muito prazeroso porque era exatamente no cruzamento da rua Estados Unidos com a rua hoje chamada D. Manuel I que os “putos” da Portela da Devesa se divertiam. Pelas tardes de verão jogávamos ao pateco, ao peão, praticávamos o infurnil. Em noites enluaradas ameaçávamos de espada lua e esconde-esconde e só parávamos quando a algumas quadras dali se escutava: “ó Luís”, “ó Manuel”, “ó Vitor”, “ò Adriano”, “ó Jorge”. Eram as nossas mães avisando que estava na hora de parar e recolher a casa para dormir.
Atravessando a D.Manuel I a primeira casa, altaneira e quadrada, cheia de janelas e ladeada nas traseiras também por um muro que protegia um quintal era do professor Rebelo, um homem alto de cabelos brancos, professor já aposentado do Magistério Primário. Não era muito afável com as crianças quando estas tentavam entrar para pegar a bola, mas falava-se à boca cheia que foi um bom professor.
A seguir vinha um quintal onde passava a ribeira centeeira a céu aberto e nesse mesmo quintal fazendo divisa com a rua ficava incrustada a Fonte dos Cruchos, de eterna lembrança. Ela foi demolida quando taparam a ribeira e foi construída a atual casa do Adrianinho que chefiava a secretaria do Tribunal. Na verdade quem construiu foi seu irmão, Sr. Artur que era funcionário público e trabalhava na Câmara Municipal. Mais tarde, já com idade bastante avançada viria a casar com a viúva de Augusto Moutinho, a Sra. Dona Maria José Braz Moutinho. Como este veio a falecer sem filhos, o herdeiro foi seu único irmão, Adrianinho que veio a se mudar para cá, acredito em finais da década de sessenta ou princípios da década de setenta.
Quem dos lavradores da Meda não conhecia a oficina do Sr. Secundino ferrador?
Ele sempre estava pronto a ferrar os animais e por quantas vezes fazer de veterinário na falta deste quando algum animal precisava dos seus cuidados. Estou escutando ainda hoje a vigorosa pancada do seu malho em cima do ferro forjado fazendo tinir a bigorna de aço. Em noites silenciosas e calmas o som cadenciado ecoava por entre as ruas e vielas da minha querida Devesa anunciando que alguém estava trabalhando para no dia seguinte servir algum cliente. Com certeza hoje isso seria tratado como perturbação do sossego.
Depois de quarenta anos afastado das famílias estou tendo certa dificuldade dos seus nomes, não das pessoas que habitavam as residências, porque essas eu as tenho bem presentes. Vou arriscar e dizer que o vizinho do Sr. Secundino era o Sr. Zé Joaquim, se não for, tenho a convicção que era o pai do Sr.Agostinho Guarda Fios. Morava ali uma família de lavradores. A entrada principal era pela rua do Tanque, mas os palhais vizinhavam com a rua Estados Unido da América. Era por ali que entravam os animais e as alfaias agrícolas.
A seguir não morava ninguém, existiam uns palhais para arrumação.
Finalmente a última casa do lado direito pertencia ao Sr. Libânio e à Sra.Maria” enjeitada”. Ela criava muitos gansos e patos que faziam os ninhos em túneis feitos por entre os cardos, onde punham seus ovos que a gente de vez em quando pegava e fritava. A Rua Estados Unidos da América morria na rua dos palames, bem de frente com a casa do Sr. Alfredo Sampaio, lavrador, e pai de seis filhos, e com a Rua do Saco e a rua sem saída onde morava a Sra.Idalina tremoceira.
O prazer, a sensação, o rejuvenescimento mental e porque não dizer físico, se a mente comanda o corpo, da descrição da mesma rua pelo seu lado esquerdo de quem a olha de costas para a rua do correio, rua esta que se podia dizer que começava no correio e terminava na escola primária feminina. Para nascente não tinha moradias, apenas um grande largo que na Primavera se cobria de relva e camomila, onde rebanho de ovelhas e alguns animais muares saciavam a sua fome.
A primeira construção era um prédio imponente com seu telhado bem inclinado, talvez porque era feito de telhas de ardósia, coisa rara na Vila. Existiam dois ou três edifícios com tal cobertura, parece-me, se a memória não me engana que ainda existe um na rua Direita, antiga moradia do Sr. Pedro, ad eternam. São dele bastantes fotos que eternizam o antigo burgo.
Neste lugar funcionava a fábrica de moagem de cereal do Sr.Fernando Cunha, tinha este apelido porque seus progenitores não eram naturais de Meda, mas de Cunha, uma aldeia pertencente ao concelho de Trancoso. Era um homem baixo, franzino, mas muito rijo, de cabelos já meio brancos, não pela idade, mas talvez pelas preocupações ou pela hereditariedade. Era casado com a Sra. Maria e tinham três filhos, a Fernanda, o Manuel e a Beatriz.
Era gente de casa. Todos meus amigos de infância, mas o Manuel era amigo mesmo, desde os cinco ou seis anos. Foi com ele que cacei, com ratoeiras, alguns tordos, pantorras, cotovias e na falta destes alguns pardais que depois de limpos a gente temperava com cebola, alho e vinho e depois fritava em minha casa e comia com pão.
O Manuel regulava de altura comigo, talvez um ou dois centímetros mais alto, mas em dia de neve perto de mim era um gigante, crescia vinte ou trinta centímetros.
Isso até hoje ainda me perturba. Sinto uma frustração terrível por o meu pai nunca me ter comprado uns tamancos com brochas para que pudesse ficar da mesma altura que ele. Era a neve acumulada no solado dos tamancos que fazia o Manuel crescer.
Foi por causa disso e, por desaforo, que há uns dois ou três anos atrás,
comprei uns tamancos na feira de Trancoso, nunca os usei, não só porque no Brasil não cai neve, mas, porque seria grotesco usar hoje em dia esse tipo de calçado, mas estão guardadinhos.
Recordo-me da romaria de Nossa Senhora do Torrão, em Longroiva onde se dirigiam o Sr.Fernando e a Dona Maria juntamente com sua prole, com farto farnel composto por algumas sêmeas, dois ou três frangos e um garrafão de vinho e se refestelavam envolta duma toalha de linho. Algumas vezes feito um intruso sem o ser participava do saudoso banquete.
Logo a seguir à moagem erguia-se a casa do Morais, esguia e altaneira, toda pintada de branco, com muitas janelas envidraçadas, apetrechadas com brancas cortinas que quebravam a luz e o sol no interior do sobrado. Eu conhecia bem a casa por dentro. Ali morava o Zé Morais, meu vizinho, garoto que apesar dos seus oito, nove anos era muito forte para a idade. O Zé não tinha morada fixa.
As relações do Morais com o Sr. João Abreu, seu sogro, não eram lá muito boas e era por causa do Zé que por vezes as relações ficavam mais acirradas, pois seu avô queria que ele fosse educado em sua casa e seu pai nutria sentimento contrário e teimava que seu filho devia ser educado em casa dos pais.
Por fim a situação econômica venceu, embora sua mãe tenha participado da sua formação quando o acompanhou em sua trajetória acadêmica. A única notícia que tenho do José Morais após a partida da Meda, foi recentemente quando fez a doação de sua casa para a Câmara Municipal, com o propósito de ser aproveitada para assuntos culturais da cidade, eu, como bom medense, agradeço pelo gesto.
Ao lado da casa descrita, sempre na direção sul ficava a casa da tia Céu Brecha, não sei se tinha algum parentesco conosco, o fato é que minha mãe a chamava de tia e eu e meus irmãos por respeito seguíamos o costume. Ela era uma mulher forte, e por ser viúva trajava sempre de preto. Depois que seu filho emigrou para o Brasil vivia sozinha e era em nossa casa que mantinha algum convívio, ou tomando conta de nós quando meus pais se encontravam no campo ou mantendo algum tipo de conversa com minha mãe. Tudo isso ela o fazia sem qualquer compromisso, mas sempre com muito amor. Recordo-a com muita saudade. Sua residência está atualmente desmoronando e já se encontra sem telhado, possivelmente derrubado por algum temporal ou por falta de manutenção.
Fazendo paredes meias com a residência a que me referi anteriormente ficava a estação de serviço do Toneca Consciência. Era ali que os carros depois de consertados na oficina da rua da Portela, eram lavados e engraxados. Todo o empregado que queria aprender o ofício de mecânica em sua oficina tinha que passar por esse vestibular nas horas de folga. Embora ninguém quisesse todos tinham que transpor essa barreira, era uma espécie de teste de aptidão para o ingresso.
Muitos passaram por ali tais como: Antoninho Lindo, Sotero Pacheco, Daniel Moreiró, Álvaro Heitor, Manuel Cunha, Chico Poinha, Afonso Pacheco, António da Canada, os Muchagata e tantos outros que não recordo os nomes e que possivelmente alguns deles já não permanecem mais entre nós.
Na próxima moradia vou-me deter mais algum tempo, porque essa eu a conheço bem.
Aqui habitaram meus progenitores logo que casaram em 1939 até que se mudaram em 1957. Era uma casa simples composta só por cômodos térreos: uma cozinha sem lareira, apenas o lugar onde se acendia o fogo, uma sala que por vezes servia de quarto, um quarto, um combarro, espécie de mezanino, que servia para arrumação de batatas e onde minha mãe colocou duas camas. Por baixo do combarro ficavam os animais: duas jumentas, a russa e a preta que ajudavam meus pais a arar a terra, um ou dois porcos, alimentados apenas com verdura colhida nos prédios e um cão chamado Facaio. É um retrato vivo que tenho na minha lembrança. Antes da porta de entrada tinha o postigo, era uma meia ante-porta que ficava sempre fechada para que a verdadeira porta de entrada ficasse sempre aberta quando tinha gente em casa. A seguir vinha um corredor ladeado por uma porta à direita que levava à pequena cozinha onde existia uma pedra sobre a qual minha mãe acendia o fogo no meio das panelas de ferro para fazer a comida e por baixo do caldeiro pendurado nas” lares”, cheio de pedaços de nabos e beterrabas a serem cozidos para alimentar os porcos. Como não existia chaminé, apenas uma raposa no telhado, que não dava vazão à fumaça provocada pela lenha verde então ela se espalhava dentro da cozinha e todo o mundo chorava como se alguém tivesse falecido.
Na hora das refeições uma pequena mesa, de uns setenta centímetros de altura coberta com uma toalha de linho e rodeada por cinco banquinhos de uns trinta e cinco centímetros, era colocada em frente da lareira. Minha mãe colocava um prato grande e fundo no centro da mesa e derramava nele bastante azeite que era temperado com sal e vinagre onde a gente molhava pedaços de batata que previamente foram cortados sobre a toalha de linho e comia acompanhados por sardinha, bacalhau ou fumeiro feito em casa.
Isto aconteceu até aos meus cinco seis anos, pois quando comecei a ter ciência de mim comecei a ter nojo e minha mãe começou a colocar um prato para cada um.
Logo em frente à cozinha tinha uma sala iluminada por uma janela, uma mesa com cadeiras e uma máquina de costura formavam os seus móveis. Ao lado um quarto. No final do corredor uma porta fazia a comunicação com o lugar onde ficavam os animais, chamado de “palhal”. Nesse tempo os animais ficavam juntos com a gente e isso tinha dois propósitos: um era para que ficassem sob a guarda dos seus donos e o outro para esquentar o ambiente
Descrevi o lugar como se fosse uma coisa fria sem calor humano, confesso que foi proposital para que pudesse gastar dois ou três parágrafos para as pessoas que ali habitavam.
O Sr. António Moreiró era um homem de um metro e sessenta e dois de altura e um quilometro de ambição, curtido pelo frio, gelo e neve, burilado pela rabiça de um arado e pela enxada faiscando a terra pedregosa, primeiro na quinta do Moreiró e depois em suas próprias propriedades. Dureza para o trabalho e firmeza nas atitudes eram qualidades que nele sobejavam
A Sra. Ana da Elisa e mais tarde Ana do Moreiró, sua esposa, o acompanhava estoicamente de manga arregaçada, fazendo inveja a muitos homens em questões de trabalho. Eles sempre souberam transmitir para os filhos que a humildade sem jugo, que o trabalho sem escravidão e que a honestidade eram meios para se alcançar o sucesso. Isso não nos foi passado em reunião ou conferência, mas através dos seus atos e exemplos que nós fomos absorvendo muito naturalmente.
Não posso falar que a ambição de meu pai era desmedida, mas era um pouco além do normal. Minha mãe era quem tratava da economia em casa e ás vezes ela nem tinha dinheiro para pagar os juros de um empréstimo anterior e lá estava meu pai comprando outra propriedade- “Ó Ana a gente comprando sempre se há-de dar um jeito de pagar”. Muitas vezes eu a vi chorar, mas no fim sempre chegavam a um resultado positivo.
Pelo procedimento de meus pais, cheguei à conclusão que arriscar é preciso e que as dívidas bem escalonadas, os compromissos assumidos, quitados na data do vencimento, e um pouco de tino visionário para os negócios de qualquer espécie levam ao progresso do homem. Os filhos para eles eram coisas preciosas,
intocáveis. Tenho a certeza que sempre quiseram o melhor para eles.
Apesar de analfabeto, meu pai era um idealizador e isso não o impedia de fazer projetos para os filhos: minha irmã, a mais velha dos filhos cedo aprendeu no Patronato a costurar, a bordar e a tricotar, tornando-se exímia nessas artes, confeccionando para uso próprio e para presentear seus familiares. Eu mesmo fui agraciado por algumas preciosidades. O meu irmão do meio tinha feito a instrução primária e meu pai vislumbrou para ele a profissão de mecânico de automóveis e futuramente a montagem de uma grande oficina. Com isso ele iria obter dois resultados: o primeiro seria o futuro de seu filho e o segundo concertar as máquinas debulhadoras de sua propriedade. Eu era o mais novo e também tinha acabado o meu curso primário, meu pai coçava a cabeça. Já tinha traçado o meu destino, mas não tinha solução para resolvê-lo. Queria que eu continuasse os estudos, mas como ele falava tinha que primeiro endireitar a espinhela, a sua situação econômica não lhe era favorável, tinha gasto sem ter, se remordia por dentro e se perguntava por que é que um funcionário público podia mandar seu filho estudar fora e ele que era um lutador, que trabalhava de sol a sol junto com sua esposa, que chafurdava aterra, que plantava que colhia o cereal tinha que se contentar ver seu filho mofar ou seguir suas duras pegadas. Esse era o caminho que ele não queria para mim, embora a profissão de lavrador fosse das mais honrosas era das mais penosas. Tinha tomado uma decisão: “ficas ajudando-nos na taberna e na lavoura e depois se verá”. Meu pai era de ideias firmes e fixas, o meu destino já estava traçado na sua cabeça, tinha que ser um doutor: médico, advogado, sabia lá o quê, contanto que fosse um doutor. Ele estava certo.
Ladeando a nossa casa ficava o armazém do Sr João Heitor. Aqui ele tinha um lagar onde fazia o vinho e o guardava em tonéis Estou vendo-o subir a rua antes do almoço trazendo numa mão um taleigo de milho para as galinhas e na outra um pechorro para levar vinho pra refeição.
Fazendo vizinhança com o armazém com o Sr. João Heitor vinha o palhal do Sr. Francisquinho Machado, lugar onde guardava as alfaias agrícolas e por vezes abrigava uma junta de bois fortes e lustrosos de tão gordos que estavam. Seu filho, Carlinhos era um homem forte, atarracado e de boa educação. Eles tinham uma propriedade chamada Gozando com um belo tanque onde a criançada nadava sem autorização. Aí sim o Carlinhos ficava nervoso e nos escondia a roupa.
A seguir vinha o armazém do tio António Carvalho. Neste lugar bem amplo, ele usava como lagar e também para arrumação de vários utensílios para a agricultura.
Logo que se atravessava a rua D. Manuel I se erguia uma construção de vários metros de comprimento que era a Adega do Sr. Cândido Vasques, grande comprador de uvas e ousado negociante de vinhos. Tinha um carro a manivela que muitas vezes ajudei a fazer funcionar, mas já possuía nos idos de 50/60 um caminhão Scania com que acarretava as uvas e transportava depois o vinho para a cidade Porto. Na época das vindimas, neste canto da Portela era uma azáfama tremenda. Carros de bois carregados de cestos de uvas chiando pelas ruas, comboios de bestas transportando dois cestos em seu lombo. Todos se dirigindo pra adega do Sr. Cândido Vasques.
Do lado de dentro muitos funcionários labutando com a feitura do vinho, ou empurrando as uvas para o moedor ou dirigindo as mangueiras com o suco para as cubas de fermentação ou ainda a lavar as cubas seguintes.
Daqui até à próxima residência não é muito espaço, andam-se uns metros, transpõe-se a travessa da Rua da Portela e na última casa desta travessa moravam a Sra. Alzira e o Sr. Albano, ela nesta época apresentava grandes sinais de demência, mal saía de casa e ele a assistia como podia. Quando ela morreu ele chorava em prantos e dizia:” Ai Alzira, Alzira tu vais e cá fica o corno do Albano sozinho”. Era um modo de expressar a sua desgraça e não que ele era aquilo que dizia. Também à Sra. Alzira ninguém tinha nada a lhe apontar que a desabonasse nesse aspecto.
Desta moradia até à ultima residência havia um grande largo totalmente coberto de cardos rasteiros com várias galerias feitas pelos patos e gansos da Sra. Maria (enjeitada) e do Sr. Libânio. Eles faziam essas galerias para porem os ovos e os garotos quando os achavam faziam-lhe um furo e bebiam, ou fritavam como foi descrito atrás. A última casa da Avenida Estados Unidos da América pelo seu lado esquerdo era uma construção simples onde morava a Sra. Leonilda com alguns filhos, um, o Armênio da Leonilda eu o conhecia bem porque trabalhou para meu pai nas debulhadoras.
Se recordar é viver eu vivi mais um pouco.
Porto Ferreira, SP, Brasil, 08/11/2012.
Luís Filipe Figueiredo da Silva.