Sapato apertado

Uma cidade que trago no coração é sem dúvidas Viseu. Era para mim sempre que a visitava um motivo de orgulho ver as ruas limpas, os seus monumentos e o antigo mercado. A par das visitas que fazia aos monumentos, também tinha que visitar as bancas de frutas, principalmente os fruto secos em especial as avelãs. Pertinho ficava a chamada rua Direita, que de direita não tem nada, mas que era o centro do comércio da cidade. Sendo uma rua bastante comprida com estabelecimentos de um lado e outro e coladinhos uns aos outros. Alguns, a única vitrina que possuíam eram a entrada do estabelecimento, expondo os seus produtos logo à entrada, inclusive no passeio.

Um mercado muito vivo onde se comprava de tudo, daí o movimento ser muito grande, mas o mais fantástico era a hora do almoço. As portas não fechavam, continuavam abertas embora as lojas estivessem encerradas para almoço. Vindo eu de Lisboa onde essa prática era impossível de se concretizar, por razões óbvias. Há vista de tal situação, o meu orgulho falava mais alto, a ponto de eu perguntar a quem me acompanhava onde é que havia um local assim. E de facto, era extraordinário o respeito pela coisa alheia, ao ponto de os donos almoçarem com a certeza de que ninguém tocava em nada. Hoje não sei se ainda assim é, uma vez que já lá não vou há uns anos.

Foi na rua Direita que comprei uns sapatos para o dia de casamento da minha filha. Sapatos esses que ainda os tenho apesar destes anos todos, não que não fossem bonitos, mas porque sempre me apertaram e nada mais incómodo dos que sapatos apertados. Tenho esses sapatos que têm a sua marca na história da minha vida e uns outros, esses, completamente novos que o vendedor me afirmava que se moldavam ao pé passado uma hora ou duas, mas nem com a forma eles alargaram. Pra ali estão numa prateleira, chamando-me de burro em surdina por ir na conversa do vendedor.

Toda esta história sobre sapatos e Viseu deve-se ao facto de ter ido visitar o meu pai, acabando por dar um ”saltinho” à minha terra natal e visitar alguns membros da família Almeida.

Depois da surpresa inicial, veio o carinho daqueles meus amigos em forma de abraço tão apertado que quase sufoca. Tocou a parte das recordações. Uma delas foi as traquinices do Fernandinho, o filho da Fernanda e do Miguel.

Moravam na altura num apartamento em Viseu e convidaram-nos para um almoço, teria o garoto uns quatro anos. Enquanto almoçávamos o Fernandinho brincava por ali. De súbito, a minha esposa dá um grito e levanta-se de chofre. Acabara de ser mordida na perna pelo garoto. A Fernanda meio envergonhada, desculpou-se como pode e dizendo não saber o que fazer com o filho, que volta e meia fazia estas tropelias sem no entanto fazer algum alarde.

Numa outra altura, enquanto a mãe apreciava uns vestidos, o pequeno aproveita a distracção da mãe e sobe para a montra imitando o manequim. A mãe só se apercebeu após as gargalhadas dos transeuntes ao verem as momices do seu rebento.

- Mas a melhor, não foi essa! A melhor, foi eu ter sido obrigada a comprar um par de sapatos que não me serviam.- Comenta a Fernanda com grande sorriso.-

- Afinal não sou só eu que volta e meia sou enganado. – Observo, com uma risada.

- Mas espera, deixa-me contar.- Pede a Fernanda pondo-me a mão no braço.- Entrei numa loja da rua Direita e pedi para experimentar uns sapatos que estavam na montra. Eram lindos, eram tal qual a minha cara,- comentou com uma gargalhada. – Então fiz das tripas coração para que o senhor me conseguisse calçar um sapato, mas lá conseguiu. Porém estava tão apertado que ia desistir, quando olho para o lado e vejo o meu garoto sair pela porta fora. Aterrada, esqueci-me de tudo e com um pé calçado e outro pé descalço corri em grande aflição atrás do meu filho.

. Tinha chovido, mas eu nem via as poças de água nem o olhar espantado das pessoas que me viam a correr dando empurrões, tentando afastar aquela gente. Eu naquele preparo, ao pé-coxinho, a gritar daquela maneira, devo ter passado por louca. Por fim alcancei este malandro, mas com um pé encharcado e o outro a doer-me de tão apertado.

O filho ao nosso lado, já um homem feito, quase a acabar a faculdade, sorria.

- Pois é Tónio, o senhor da loja ao ver o sapato encharcado disse que o tinha que comprar porque assim já não o conseguia vender. Resultado, tenho ali um par de sapatos com cinco minutos de utilização e com uma história para recordar.

Visivelmente bem-dispostos, regressamos à Tocha com a promessa de na próxima, ficarmos lá um fim-de-semana e recordarmos mais histórias.

Como é bom ter amigos!

Lorde
Enviado por Lorde em 27/11/2013
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