Biografias que estão faltando

BIOGRAFIAS QUE ESTÃO FALTANDO

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 27.11.13)

Há um livro sobre notória figura pública brasileira, cujo nome batiza praças, ruas, rodovias, bibliotecas e cidades, em que o coordenador da obra refere-se assim ao protagonista:

"Enfrentou duras situações na controvérsia e confrontações que se estabeleceram por ocasião da montante de subversão da esquerda que inundou o País nos anos de 1963 e começo de 1964, cuja gravidade maior estava na conivência do Governo de então com este processo que visava a conquista do poder através da estratégia da guerra revolucionária. Procurava-se confundir legalidade e direito, na sua meta de implantar no Brasil uma república socialista (pseudossindicalista)."

Tais palavras, que procuram acima de tudo justificar o rompimento arbitrário da ordem legal e a violação da Constituição Federal em nome de causa advogada por uma minoria, são de autoria do General Carlos de Meira Mattos, então membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no livro Castello Branco e a Revolução, de 1994, publicação nº 610 da Biblioteca do Exército Editora, volume nº 300 da "Coleção General Benício". A obra inscreve-se claramente na filiação das biografias autorizadas.

O General avalia que Castello, "nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército, sentiu em cheio os perigos a que a Nação estava exposta, ante a extensão da infiltração subversiva", subversão essa que pretendia assegurar "a imobilidade conivente das Forças Armadas, em nome de uma pretensa vontade popular", e decidiu trair seu povo e seu chefe, o Presidente da República, apoiando o golpe.

Até aí, tudo bem. O que intriga é a citação que o General faz de Luiz Vianna Filho, da Academia Brasileira de Letras, governador biônico da Bahia durante a ditadura e biógrafo oficial do primeiro ditador gerado por 1964:

"O próprio General Castello Branco, até então cingido a um estado de contenção, não só visando preservar o Exército, mas também conservar-se leal aos ideais democráticos da Constituição, reconheceu que a observância da legalidade conduzia ao comunismo."

O estranhamento é tanto maior quando se tem hoje a comprovação inequívoca, a partir de documentos oficiais dos EUA, de que a derrubada do governo constitucional brasileiro foi uma obsessão paranoica de Kennedy e Johnson, instigados por seu embaixador no Brasil, o funesto Lincoln Gordon, e que Castello já estava escolhido por eles muito antes do golpe. Como então um sujeito tido por inteligente, notório respeitador da ordem e da hierarquia, e até democrata, deixa-se envolver assim por uma maquinação que visa subverter o Brasil em benefício, não da União Soviética, mas dos Estados Unidos? Ou para ele faria diferença submeter a população e as riquezas nacionais aos interesses políticos e comerciais à direta ou à esquerda, ao invés de assegurar a independência do País?

Uma biografia não autorizada - ou várias delas - do ingênuo Castello (pois não terá ele morrido na pobreza espartana, como seus sucessores da caserna?), esquadrinhando seus valores, sua vida e seu pensamento, é o que de melhor se poderá fazer para elucidar esse capítulo da vida nacional. Outras biografias do tipo nos revelarão, despidos da farda, os homens Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo e as motivações das atrocidades cometidas em seus períodos de comando ditatorial.

Em compensação, teremos também, para leitura e instrução, as biografias não autorizadas de Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma. Assim é que se faz História - não com censuras.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

"Tratei, pois, de preservar a verdade dos princípios elementares da natureza humana, ao mesmo tempo que não tive escrúpulos em inovar quanto às suas combinações."

Mary Shelley, Prefácio a "Frankenstein ou O Prometeu Moderno"