Olhar de abismos

Uma coisa para mim é certa: ele seria muito mais feliz se não tivesse lido tanto, ou nada, de preferência, nem romance policial, nem livrinho de espionagem, nada. Mas ele quis ler. Fez ficha na Biblioteca Pública com dez anos de idade, e no mesmo dia, assim que pôs sua assinatura no livro de matrículas, começou a escarafunchar as estantes com uma voracidade impressionante. Quase todos os dias ele devolvia um livro e pegava outro. Dos infanto-juvenis foi logo para as novelas policiais: Conan Doyle, Agatha Christie, Ellery Queen, Dorothy L. Sayers, P. D. James e outros. Devia ter parado por aí, mas avançou, quis mais: partiu para Tolstoi, Dostoievski, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Graciliano Ramos, Hermann Hesse, Nietzsche, Schopenhauer, e foi indo, sem medo, cada vez mais fundo.

Hoje, depois de ter lido milhares de livros madrugadas adentro, ou durante o dia (nas poucas horas livres que possuía) em casa, em hotéis, na ponte aérea, em consultórios, na academia, e explorado seus inumeráveis abismos de luz e escuridão, ele sofre por ter que viver a maior parte do tempo ciscando como galinha na superfície do terreiro, no raso do chão, cuidando de coisas, ou de assuntos ligados a coisas: como ganhar dinheiro para pagar os financiamentos do carro importado e do apartamento de luxo onde ele passa a menor parte da sua vida, ou batalhar uma promoção com o chefe, para ganhar mais, trabalhar mais e ter menos tempo ainda para fazer o que realmente gosta: ler bons livros, escrever, namorar e assistir a filmes de terror na sala comendo pipoca.

(Dinheiro, dinheiro, dinheiro, tudo girando em torno do dinheiro e do que ele pode comprar).

Mas no fundo ele não é assim, não quer ser assim. Seu sofrimento, ele acredita, é fruto das inúmeras leituras que fez, sobretudo dos clássicos da literatura. Neles descobriu um mundo que transcende a natureza física das coisas: o das profundezas do espírito, onde habita o indizível, o inefável; e olhando de lá, do fundo do fundo do fundo, viu que a superfície não passa de uma camada fina de pó cheia de coisinhas a serem ciscadas e rapidamente consumidas, e que o homem, no geral, age nesse terreiro como um fantoche, um mero escravo de modelos e padrões de sucesso e status social.

Dividido entre dois mundos, ele sofre.

O que fazer? Tapar com areia e terra os abismos e recessos do espírito e viver só na superfície? Suicidar-se?

Não, não é isso que ele quer. O que ele quer é querer menos as coisas da superfície; desejar menos o que o dinheiro pode comprar; ser mais humilde e não se importar com o que os outros pensam dele; cultivar mais a simplicidade e a solidariedade; viver com menos (o que não quer dizer viver mal), para ter mais tempo para o amor e o prazer. Liberdade... É isso que ele quer. E ele vai conseguir.

(Agora, do fundo de um abismo de luz, tomado de uma felicidade abrasadora, ele observa indiferente o movimento na superfície. Seu coração está em paz).

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 22/11/2013
Código do texto: T4582107
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