Leite, torrada e mel

Eles dormem na mesma cama, mas com cobertores separados. Isso porque ela não aguenta o cheiro de pinga do marido quando chega do bar. Todo dia ele chega em casa, toma um banho e sai pra beber. Quando volta, seu cheiro infesta o quarto. Tem vezes que ela não aguenta e vai dormir no quarto do filho pequeno. Faz uma pequena cama e dorme no chão mesmo. Os dois já brigaram feio. Ela pede para ele ir embora e ele responde que os incomodados que se mudem – e diz isso mesmo sabendo que foi ela quem bancou a construção da casa e comprou os móveis. É uma das poucas vezes em que ele fala alguma coisa, porque no geral está alheio e não conversa nem com os filhos. São os filhos, inclusive, o motivo pelo qual ela não se arrepende do casamento.

Mesmo não amando. Quem ela ama mora há anos ao lado de sua casa. É um homem extrovertido como ela, trabalhador, e casado com uma mulher que só sabe reclamar da vida. Aparentemente, o homem também gosta dela, mas nunca aconteceu absolutamente nada. Seus filhos sabem desse amor. O maior medo era de que os filhos não a perdoassem, mas são eles mesmos que recomendam: “Separe-se do pai”. Ela não tem essa coragem, ainda mais depois que entrou para uma igreja bem rígida. Mas vontade ela tem. Tem dias que a filha está distraída fazendo alguma coisa quando ela chega e revela: “Eu amo ele...”. Penalizada, a filha apenas consegue responder “Eu sei, mãe..”.

Parece que este casal platônico tem inclusive uma música que é só deles. Assim que começaram a se gostar (e lá se vão mais de dez anos), tocava bastante no rádio aquela música fofinha do Roxette chamada “Milk and toast and honey”. Por isso ela canta que quer leite, torrada e mel, para fazer ensolarado um sábado chuvoso, e que aí vem ele, trazendo um pouquinho de amor e levando embora a dor aqui de dentro. Provavelmente o verso que mais lhe dói seja esse: “Não é engraçado como as coisas às vezes parecem tão claras e próximas?”. E lá se vão mais de dez anos.