O xingamento vem de longe
Entrei no serviço público em janeiro de 1958, com vencimentos limitados, mas muito feliz. Tinha tudo o que um funcionário do Estado, solteiro, podia almejar.
No Brasil daquele final de década, os assalariados ainda não viviam com o pires na mão.
A grana que recebia todo fim de mês, não dava para comprar camisas de fina grife; nem para freqüentar restaurantes de alto luxo. Dava, entretanto, para adquirir uma calça de linho, uma camisa de tergal, e um par de sapatos de coro de bezerro alemão.
Tinha o dinheiro da cervejinha e do acarajé do happy hour, sem comprometer o orçamento.
Na carteira, mantinha alguns merréis, para gastar com a namorada. Era uma época em que o mancebo fazia questão de financiar o seu lazer e o da sua amada.
Só depois é que as meninas passaram a colaborar, dividindo, com o seu parceiro, as despesas das farras de fins de semana.
Com os vencimentos oscilando, porque fixados ao sabor deste e daquele governo, fui, com a paciência de Jó, completando meu tempo de serviço público. Até que me vi forçado a vestir o pijama, fazendo-o serenamente.
Curto minha aposentadoria sem melancolia e sem essa solidão.
Mas, de vez em quando, sou obrigado a dar algumas bananas àqueles que xingam ou maltratam os aposentados.
Há poucos minutos, recebi um memorando reajustando o meu Plano de Saúde. Porque considerei a medida um escárnio, aproveitei para mandar meia-dúzia de bananas pros algozes dos inativos.
Mas xingar, maltratar o funcionário público aposentado não é coisa deste século.
Em 1859, um respeitável cronista brasileiro já falava mal dos inativos do serviço público.
De repente sua maravilhosa pena malhou o aposentado, fazendo-o com despropositada ironia e inexplicável inclemência.
"Ah, mas ele falava do aposentado do seu tempo", disseram os intransigentes defensores do afamado cronista carioca.
Argumentei, que, dado o inquestionável valor e prestígio do ilustre escriba, seus escritos não seriam destruídos pelo tempo, e o xingamento permaneceria para sempre...
Não estava inventando: suas crônicas continuam vivas, não obstante ele tenha morrido há quase cem anos.
Mas vejam, em resumo, o que ele aprontou: "Conceber um aposentado sem caixa de rapé é conceber o sol sem luz, o oceano sem água. Um pertence ao outro, como a alma pertence ao corpo; são inseparáveis."
(Quando me aposentei, não me socorri do corrimboque para diminuir o impacto causado pela inatividade; apesar de carregar comigo uma herança familiar chegada ao rapé.)
E foi mais adiante o cronista. Para ele, os funiconários públicos aposentados podem ser visto como as múmias do Egito; eles só refletem o passado, e por ele choram como criança; são "carpideiras dos velhos sistemas"; "viúvas das secretárias"; e "arqueólogos dos costumes." Tá?
Se o escritor ao qual aqui me refiro, sem qualquer mágoa, não fosse o senhor Joaquim Maria Machado de Assis, já o teria mandado para o inferno.
Em agradecimento ao muito que com o Bruxo do Cosme Velho continuo aprendendo, mando-o, por enquanto, para o purgatório...
Entrei no serviço público em janeiro de 1958, com vencimentos limitados, mas muito feliz. Tinha tudo o que um funcionário do Estado, solteiro, podia almejar.
No Brasil daquele final de década, os assalariados ainda não viviam com o pires na mão.
A grana que recebia todo fim de mês, não dava para comprar camisas de fina grife; nem para freqüentar restaurantes de alto luxo. Dava, entretanto, para adquirir uma calça de linho, uma camisa de tergal, e um par de sapatos de coro de bezerro alemão.
Tinha o dinheiro da cervejinha e do acarajé do happy hour, sem comprometer o orçamento.
Na carteira, mantinha alguns merréis, para gastar com a namorada. Era uma época em que o mancebo fazia questão de financiar o seu lazer e o da sua amada.
Só depois é que as meninas passaram a colaborar, dividindo, com o seu parceiro, as despesas das farras de fins de semana.
Com os vencimentos oscilando, porque fixados ao sabor deste e daquele governo, fui, com a paciência de Jó, completando meu tempo de serviço público. Até que me vi forçado a vestir o pijama, fazendo-o serenamente.
Curto minha aposentadoria sem melancolia e sem essa solidão.
Mas, de vez em quando, sou obrigado a dar algumas bananas àqueles que xingam ou maltratam os aposentados.
Há poucos minutos, recebi um memorando reajustando o meu Plano de Saúde. Porque considerei a medida um escárnio, aproveitei para mandar meia-dúzia de bananas pros algozes dos inativos.
Mas xingar, maltratar o funcionário público aposentado não é coisa deste século.
Em 1859, um respeitável cronista brasileiro já falava mal dos inativos do serviço público.
De repente sua maravilhosa pena malhou o aposentado, fazendo-o com despropositada ironia e inexplicável inclemência.
"Ah, mas ele falava do aposentado do seu tempo", disseram os intransigentes defensores do afamado cronista carioca.
Argumentei, que, dado o inquestionável valor e prestígio do ilustre escriba, seus escritos não seriam destruídos pelo tempo, e o xingamento permaneceria para sempre...
Não estava inventando: suas crônicas continuam vivas, não obstante ele tenha morrido há quase cem anos.
Mas vejam, em resumo, o que ele aprontou: "Conceber um aposentado sem caixa de rapé é conceber o sol sem luz, o oceano sem água. Um pertence ao outro, como a alma pertence ao corpo; são inseparáveis."
(Quando me aposentei, não me socorri do corrimboque para diminuir o impacto causado pela inatividade; apesar de carregar comigo uma herança familiar chegada ao rapé.)
E foi mais adiante o cronista. Para ele, os funiconários públicos aposentados podem ser visto como as múmias do Egito; eles só refletem o passado, e por ele choram como criança; são "carpideiras dos velhos sistemas"; "viúvas das secretárias"; e "arqueólogos dos costumes." Tá?
Se o escritor ao qual aqui me refiro, sem qualquer mágoa, não fosse o senhor Joaquim Maria Machado de Assis, já o teria mandado para o inferno.
Em agradecimento ao muito que com o Bruxo do Cosme Velho continuo aprendendo, mando-o, por enquanto, para o purgatório...