Outro passado
Dona Lúcia, a dona do quarto em que moro, esparramou um monte de fotos velhas pelo chão, em pleno corredor. “Às vezes eu gosto de ficar olhando pra elas. Mas nem sempre, porque eu lembro de tanta coisa...”. Aquela senhorinha, com os seus 70 anos, queria achar uma foto em especial provando que há algumas décadas ela havia sido uma aeromoça. Tudo isso porque eu havia comentado alguma coisa sobre o caos dos aeroportos no final do ano. Essa simples alusão foi suficiente para que Dona Lúcia se lembrasse do tempo em que vivia uma vida menos solitária. Sem muita escolha, vi-me então arrastado para o passado de Dona Lúcia.
Fico sabendo que foram 25 anos trabalhando na Vasp e voando por todo o Brasil. Nunca aconteceu nada, mas havia um piloto que teve cinco acidentes e por isso o pessoal começou a chamá-lo de “pé-de-cova”. Era um homem cheio de platina pelo corpo. Dona Lúcia gostava de trabalhar e só saiu porque tinha um marido ciumento, que foi até lá pedir a sua demissão. Aliás, diz ela que teve sete maridos. Enquanto procurava a foto, Dona Lúcia se distraia com outras, como a de uma amiga mais nova, que também voava. Essa amiga tinha um filho drogado. Um dia, quando ela viajou, o filho aproveitou pra vender todos os móveis de casa. A amiga morreu de câncer, e Dona lúcia não sabia o que havia acontecido com o filho depois disso. Tudo isso ela falou com muito mais detalhes, e eu apenas ouvia, até o momento em que ela achou que estava tomando o meu tempo demais, guardou as fotos dentro da caixinha e se foi – sem achar a tal foto de aeromoça.
Contei essa história a uma amiga e ela se admirou que eu tenha tido paciência para ficar ouvindo durante tanto tempo. Foi um bom tempo mesmo, mas seria uma injustiça impedir que aquelas emoções corressem soltas, depois de tanto tempo guardadas. A muitas pessoas idosas já não se dá mais a oportunidade de recordar sobre a sua vida. Há muito tempo que não nos interessamos por outro passado que não o nosso.