A primeira namorada

Estou zangado! Muito zangado, mas zangado mesmo, caraças! Sinto uma raiva dentro de mim, tal qual um vulcão prestes a soltar toda a força contida durante séculos e que de repente com grande rugido, expele lava e cinza num mar de fogo que destrói tudo em redor sem que ninguém consiga controlar tal fúria.

É o momento de me isolar, não ouvir ninguém, que mesmo com boas intenções ao tentar acalmar-me, o efeito sobre mim é de água sobre uma frigideira a arder.

Sei que me vai passar, e tal como das outras vezes, à ira sobrepor-se-á uma sensação esquisita de culpa, onde sensação, é de todos me apontarem o dedo reprovador. São momentos de angústia e mal-estar, onde a revolta se mistura num mar de incertezas de quem assiste a razão. Há um sentimento querendo-me aproximar das pessoas e um ego auxiliado por mil demónios que me puxa para traz, numa luta que só o isolamento combate. Porém, com o tempo esta turbulência vai se dissipando, como nuvens num dia de grande borrasca, se vão afastando e dando lugar temerosamente ao sol.

Não é o caso de hoje, pois a dor que sinto na cabeça após levar com as tenazes, “carinhosamente” dadas pela minha mãe, numa lição de autoridade, de que, mãe manda e filho obedece. À falta de argumentos para manter a autoridade, servem perfeitamente uma vergasta, uma vassoura, uma cavaca ou como neste caso, as tenazes ainda com uma brasa na ponta.

É neste transtorno emocional que me encontro, onde nem as pragas ditas em surdina enxergam qualquer réstia de sol. No meu rosto não se vislumbram lágrimas, antes um vermelhão e uma vontade férrea de não mostrar sinais de fraqueza perante a dor. São treze anos já feitos e uma experiência de vida derivados de uma vivência muito enriquecedora entre o trabalho e a vadiagem com os rapazes mais velhos. Sem controlo paterno, era todo o dia fora de casa. Qual ave acabada de sair do ninho, todo dia era uma aventura, sentindo sempre a protecção dos mais velhos, tanto nos montes como na escola.

Era prática naquele tempo os mais velhos olharem pelos mais novos, daí os pais que nas suas lides por vezes só viam os filhos à noite.

Tudo isto teve como começo: Depois de uns pontapés na bola, com o meu amigo Júlio (um ano mais novo) e a vistoria pelos arredores a sondar as árvores de fruta temporãs, chegamos a casa com a goela sequiosa. Depois de tamanho esbanjamento de energias, afocinhámos numa gamela de vinho, acabado de trasfegar pelo meu pai.

- Pois é Tónio, tu ainda não namoras com ninguém?

- Não.

- Pois eu, já vou na terceira.

O efeito do vinho tinha-nos encostado à sombra do alpendre e como dois adultos meios assarapantados, começamos numa de desenferrujar a língua, vomitando vantagens e sonhando que nem gente grande.

- Pois é assim mesmo como te digo Júlio, o “serôdio” pregou-me cá um cagaço que até pensei que me ia abaixo das canetas. Vê lá tu que mandou-me umas pedradas quando eu estava em cima da cerejeira da Candongueira, que só tive tempo de saltar e correr que até os calcanhares me tocavam no cu. A uma distância segura olhei para traz e vi o manfio a rir-se à minha custa.

- Eh! Eh!... Não fez nada mais do que tu tens feito aos outros sempre que podes. – Diz o Júlio a rir.

- Mas, eu sou eu. Mas deixa estar que quando apanhar ranhoso a jeito, há-de ficar de trombas arder.

- Ó Tónio deixa isso para lá. Mas, a sério que ainda não catrapiscaste nenhuma.

- Não, já te disse que não.

- Mas isso não é d’homem.

- O queres dizer com isso, não é d’homem?

- Nada, nada, mas a malta já comenta. E olha que eu defendo-te sempre.

- Mas o que é que essa cambada de tinhosos tem a ver com a minha vida?... Mas olha que só para vos mostrar ainda hoje peço namoro.

- A quem?

- Sei lá, mas alguém há-de ser.

Já estávamos à um bom bocado debaixo do alpendre e sentia a cabeça meio zomba de tanto pensar a quem é que eu pediria namoro, quando vejo passar para o fontanário a minha vizinha Amália. Como se me picassem no rabo dei um salto e digo. – É esta mesmo Júlio, é esta mesmo!.

Dei uma corrida e coloquei-me de frente à minha vítima, antevendo um redondo não, quer pela forma pouco usual como a abordei quer pelo desplante meio atoleimado, mas havia que calar os meus detractores.

- Amália, tu queres namorar comigo?

Pega de surpresa, a pobre menina fez um compasso de espera, fazendo com que eu começasse a imaginar o chorrilho de adjectivos com que me iria mimosear. E não era para menos, então, aparece do nada aquele energúmeno, soltando pelas ventas um hálito etílico e com um ar meio esquisito a perguntar se queria namorar. Só podia ser brincadeira ou gozação. Que fosse gozar com a família dele.

- Se for da tua vontade, eu aceito.

Quem ficou sem fala fui eu, logo eu que estava preparado para ouvir das boas, e ela diz que sim.

- Então, está bem, somos namorados!

E sem mais conversa retiro-me para junto do Júlio, que de boca aberta testemunhava todo este meu romantismo.

A noitinha já a minha mãe sabia da conquista do seu filho mais velho. Azar o meu, porque a minha mãe não se dava com a mãe da Amália. E ali, sem mais aquelas, exigiu que eu acabasse com o namoro ainda antes de começar.

Perante a prepotência da minha mãe, enchi-me de brios e disse-lhe que não, que namorava, namorava e pronto. O resultado foi perante falta de argumentação, me dar com as tenazes na cabeça. Eis a razão de eu estar zangado.

Mas a coisa morreu ali mesmo, não pela imposição materna, mas porque só fiz o que fiz por provocação e pela acção do vinho.

Nunca cheguei a saber se Amália me perdoou ou não, porque pouco depois, vim para Lisboa e nunca mais nos vimos.

Lorde
Enviado por Lorde em 21/11/2013
Reeditado em 21/11/2013
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