Até que o conhecimento nos liberte
Ainda que no século terceiro antes de Cristo os gregos já tivessem sólidas teorias a respeito do formato esférico da Terra, durante muito tempo acreditou-se que vivêssemos numa terra plana. O monge Cosmas Indicopleustes escreveu no século VI um livro no qual ridicularizava a crença pagã na Terra redonda, argumentando que se assim fosse, metade do planeta viveria de cabeça pra baixo e a chuva cairia “para cima”, dentre outros argumentos absurdos, embora intuitivamente corretos.
Povos primitivos cultivavam crenças e hábitos ainda mais estranhos e bárbaros. Estudos arqueológicos apontam para evidências de rituais com sacrifícios humanos, com o objetivo de aplacar a fúria dos deuses. Qualquer tempestade de verão no vilarejo já era motivo suficiente para levar na bandeja a cabeça de um infeliz para acalmar o Deus ensandecido.
A Inquisição, movimento comandado pela Igreja Católica durante a Idade Média, julgou e condenou à morte milhares de supostos hereges, perseguindo todo aquele cujas crenças se opusessem à doutrina dominante à época. Justamente os cristãos, tão perseguidos nos séculos antecedentes por defender suas (então) revolucionárias ideias.
Estamos começando a questionar (com mais passionalidade que razão) os limites da intervenção humana no mundo animal, mas não está tão distante assim o tempo em que escravizávamos gente. Mercadores de escravos capturavam pobres almas em algum miserável país africano e os transportavam como bichos enjaulados em navios sujos, para serem comercializados como mercadoria viva em outros continentes, onde deveriam trabalhar forçadamente pelo resto de suas vidas a troco de sobras de alimentos. Uma ideia abjeta, mas largamente aceita pela sociedade da época.
O Nazismo foi uma mancha terrível na história da humanidade e um trauma até hoje mal digerido pela sociedade alemã. Um episódio nefasto que resultou na morte de milhões de inocentes e um dos estopins da segunda guerra mundial. Hitler foi um ditador sanguinário, mas com amplo suporte popular para a execução de suas diabólicas idéias. Mesmo após a derrocada do regime nazista, ainda havia um nível de aceitação desconfortavelmente grande do seu odioso ideário, como mostra o arquivo de pesquisas de opinião feitas no pós-guerra.
Recentemente (mês passado, para ser mais exato), um movimento de mulheres da Arábia Saudita causou furor, quando intrépidas cidadãs resolveram se unir num ato de desobediência civil e… dirigir! Isso, simplesmente dirigir, porque na Arábia Saudita, em pleno ano de 2013, mulheres não podem dirigir. Clérigos sauditas alegam que o ato pode prejudicar os ovários e dar origem a bebês com problemas clínicos. Uma justificativa que consegue a proeza de soar mais absurda do que a proibição.
A histeria tem raízes mais antigas. Em 1873, um físico da prestigiosa Harvard, Dr. Edward Clarcke, publicou um livro no qual afirmava que as mulheres que liam muito poderiam se tornar estéreis, uma vez que o esforço provocado pela leitura drenaria o fluxo sanguíneo do útero para o cérebro, provocando a atrofia daquele e a conseqüente esterilidade. O Dr. Clarcke deve ter lido demais e drenado sangue do seu cérebro para algum órgão menos nobre, porque a tese é tão estapafúrdia quanto estéril.
Em alguns países africanos, extirpam-se o clitóris de meninas ainda crianças, para que quando adultas não tenham o risco de sentir o diabólico prazer do sexo. Muitas delas morrem no procedimento, feito sem anestesia e sob condições de higiene bastante precárias.
É estranho, porque a gente se acha tão moderno, mas ainda estamos imersos em trevas, crenças, crendices e superstições que remontam a uma era medieval que não combina mais com nossa soberba hi-tech.
Geek low tech: Jobs recusou a medicina em nome de tratamentos alternativos
Geek low tech: Jobs recusou a medicina em nome de tratamentos alternativos
O genial Steve Jobs, fundador da Apple, visionário de algumas das mais modernas ferramentas que hoje temos às mãos, recusou os mais avançados tratamentos disponíveis para se tratar de um câncer recém detectado, tamanha era sua crença em terapias alternativas. A teimosia acabou custando-lhe a vida.
Nossa construção cerebral e social nos faz vítimas potenciais para crenças infundadas. Tendemos a consumir apenas a informação que reforça nosso arcabouço primário de teses pré concebidas e inconscientemente ignoramos tudo o que se contrapõe a isso. Precisamos de explicações (mesmo quando elas não existem ou não estão disponíveis) para diminuir a gigantesca incerteza que nos rodeia e que envolve nossa mágica existência no mundo. Muitas vezes nos agarramos a essas idéias ou crenças por conforto, conveniência ou puro temor.
A saga humana na Terra é um dos mais emocionantes capítulos que já conseguimos escrever. Descobrimos o fogo, inventamos a agricultura, domamos um ambiente selvagem, imprevisível e inóspito, criamos a linguagem escrita, desenvolvemos a medicina, erguemos pirâmides monumentais (com mão de obra escrava), pisamos na Lua, criamos a internet, produzimos aviões que transportam 500 pessoas a 1000 km por hora entre continentes, pintamos a Mona Lisa e a Capela Sistina, inventamos a música e aprendemos a misturar morango com chantilly.
Mas também já fizemos as mais abomináveis atrocidades nessa caminhada até aqui. Há uma desconfortável ambivalência nesse jogo evolutivo de conquistas e pilhagens, que vamos assimilando (e eventualmente corrigindo) ao longo de nossa trajetória. Muitas vezes somente o distanciamento histórico e cultural nos permite enxergar o gigantismo do errado em tudo aquilo que imaginamos certo.
Hoje nos escandalizamos com escravidão, rituais de sacrifício, preconceitos e nazismo. E daqui a 100 anos? De tudo que cremos certo e placidamente fazemos hoje, do que se horrorizarão nossos tataranetos?