Grandes dilemas brasileiros
À minha frente, uma senhorinha tenta convencer a outra a tomar com ela um dos muitos transportes piratas oferecidos, sem a menor cerimônia, na própria Rodoviária do Plano Piloto em Brasília. Ao que parece, a outra já está decidida a ficar esperando o ônibus mesmo. Mas a senhorinha argumenta: “Você não vai até a Comercial? Pois o homem disse que passa lá. E cobra o mesmo preço do ônibus. A gente sai agora, não precisa ficar esperando”. Percebia-se certa aflição na senhorinha, que aparentemente não conseguia entender por que é que alguém, diante de tamanha comodidade oferecida, ainda assim fincava o pé e decidia esperar pelo ônibus. Sem se preocupar em dar uma explicação razoável, a outra se limitava a negar com a cabeça.
Ora, por trás da banalidade desse episódio eu vislumbrei grandes dilemas brasileiros. Tudo leva a crer que a senhora que recusou o transporte pirata, apesar de todos os seus benefícios, carregava dentro de si alguma motivação ética ou moral. E para preservar a sua integridade, se dispunha a esperar por um ônibus velho que demora muito e está longe de oferecer a mesma comodidade de um carro. Chegaria bem mais tarde ao seu destino, mas estaria satisfeita consigo ao julgar que fez a coisa certa.
A senhorinha, por outro lado, sabe que o governo – qualquer governo – não oferece transporte público de qualidade e, como tem uma série de afazeres que exigem certa urgência, acolhe de bom grado a possibilidade de uma viagem mais rápida e confortável, mesmo que isso signifique se beneficiar de uma prática contrária à lei. Oferecendo o transporte pirata está alguém que não ganha dinheiro suficiente em seu emprego.
Disso tudo se observa que não oferecemos condições para que a lei seja cumprida senão a custo de muito sacrifício pessoal. É o mesmo caso das marmitas irregulares, que tanto prejudicam os restaurantes já estabelecidos e legalizados, mas ao mesmo tempo garantem que pessoas não morram de fome por cumprir a lei.