OUVIR O FUTURO

Fome. Miséria. A mentira a acalmar. O monstro a devorar. Monstro é aquilo que se mostra, algo gigantesco, envolvente, maravilhoso, monumental. Mas o monstro de que falo, apesar de ser algo gigante no mundo das coisas artificiais, mostra-se com voz mansa e nos embala com sonhos de amor e de paz. Mais do que um mundo cartesiano, vivemos num mundo imagético, iconográfico, simbólico. É impressionante como o monstro utiliza-se dos mais belos símbolos produzidos pela humanidade, como o faz com os nossos tão caros Paz e Amor. Ele faz a guerra parecer paz e o desamor parecer amor. Ele luta contra a vida, e a isso chama paz. As grandes empresas que governam o mundo – apoiadas e mesmo emparceiradas por Estados e mídia – não estão preocupadas com nossas vidas. Sua preocupação única e exclusiva é o lucro. A grande empresa não é uma pessoa. Logo, por que motivo amaria uma? Que razão teria para ter piedade, compaixão, amizade, respeito a um ser humano, se ela própria não é um? O monstro usa os hippies e usa Jesus. O paz-e-amor dos hippies virou ora piada, ora mercadoria – dependendo da demanda – nas mãos habilidosas de manipulador de fantoches que é o monstro. A paz e o amor cristãos transformaram-se em seus aliados na destruição da força criativa do homem. Mas isso até que não é novidade, já que sabemos que a Igreja sempre cuidou de alimentar o monstro. É conveniente a ele que as pessoas estejam sonhando com o céu, com a cura, com a paz, enquanto são sugadas, iludidas, forçadas a caminhar na direção que “ele” quer.

O movimento Occupy Wall Street me invadiu – a mim e a muitos – o coração, enchendo-o de esperança. Para mim que não vivi os anos 60, aquilo ali foi uma espécie de “primeiro ato” – essa é minha interpretação e minha aposta. No Brasil, as jornadas de junho foram a nossa versão daquilo. Mas o que foi aquilo, seja lá ou aqui? Aquilo, amigos, foi a força rebelde da juventude, que, dadas mil circunstâncias, está reaprendendo a reclamar seu papel no mundo. Um papel de verdade, não agentes de um misterioso roteiro para figuras de pano num teatro de marionetes. Aquilo, de junho – e que ainda guarda alguma pressão em novembro –, não foi uma micareta, um carnaval fora de época. Não, não foi. Um futuro “segundo ato” nos dará com mais clareza explicações sobre o que quer a juventude. As manifestações de junho não foram fruto de uma agenda. Elas foram orgânicas como respirar. Orgânicas como gritar ante o açoite. Não se pode explicar tudo o que vem do corpo. Ainda mais quando esse corpo é atordoado, aviltado e molestado de todos os lados, pelo monstro que o cerca. Ele nos cerca de todas as formas, pois está em todos os lugares: no nosso ambiente de trabalho, nos assuntos religiosos, no nosso lazer, nas artes, na mídia, no seio do nosso lar, infelizmente até nas escolas. E até nos nossos sonhos: até nos de paz e amor. Mas não adianta, pois o corpo sabe que as coisas não vão bem. Talvez o monstro ainda não tenha roubado a nossa alma, ainda que tomado nosso corpo emprestado.

As vozes do futuro ecoaram nas ruas do Brasil em junho de 2013. Acontece que “eles” não querem que ouçamos o eco daquelas vozes. É estratégico mostrar os aspectos negativos. É uma missão da direita tapar os ouvidos – seus próprios ouvidos e os do cidadão oprimido – para as vozes que vem do futuro. A direita apregoa o mito da democracia. Que democracia é esta, onde votamos, como autômatos, num candidato que vai, ocultamente, representar não a mim, mas às corporações que patrocinaram a campanha milionária de seu partido? Sim. Vivemos o mito da democracia, com expectadores de um filme em 3D. Ou seria um filme mudo, onde a voz do futuro jamais pode ser ouvida. Enfim, entramos na fila de votação como que na fila de um cinema, de um teatro, ou como bois num abatedouro. Assim construímos a democracia que o sistema quer.

Interpretar o que o futuro diz não é tarefa fácil. O que ele nos tem a dizer sobre paz, amor e bem viver? Imagino que sua mensagem de paz não é a mesma que ouvimos hoje na mídia. A mídia, lacaia das corporações, nos prega uma paz de presépio de natal. E já que o sistema, como eu disse acima, faz a guerra parecer paz, e o desamor parecer amor... Já que ele ridiculariza o paz-e-amor sempre que necessário, e, quando precisa, usa-o como mercadoria quase ideológica, como a solução pronta para todos os problemas... Não seria então, posto isso, e a partir de uma possível consciência disso, um momento oportuno na história presente para a juventude reaprender como se reinventa o amor e a paz? Não duvidemos que ela esteja fazendo isso neste exato momento. A juventude contra o monstro. A juventude contra o sistema. O sistema interpreta o amor cristão ao seu modo, preferindo o crucificado e o céu, do que o Jesus comunista e a Terra. O sistema só não interpreta – ou não quer interpretar, ou não quer que interpretemos – o que diz o futuro. Ele que é sejamos sempre pacíficos e amáveis. Mas... que paz? que amor? A juventude de esquerda (sob todas as mais variadas formas), sim, tem a força criativa para desconstruir e reconstruir paz e amor. A juventude não mais suportará essa paz e amor feitos de gesso e cimento. A nova juventude mostra que está recuperando a coragem. O jovem começa a divorciar-se da mídia tradicional, patrocinada pela elite mal intencionada. A TV nem chega a pronunciar o nome de Karl Marx. Isso faz lembrar o filme “A Vila”, onde há um código de conduta social em que é proibida a pronúncia da palavra “vermelho”, como forma de “proteger” os habitantes do lugarejo – que fica no meio da floresta – de uma verdade que seus líderes julgam inconveniente. Hoje no Brasil, a mídia impressa, por exemplo, ridiculariza a figura de Che Guevara, chamando-o de criminoso, de assassino, o que virou lugar comum. É claro que eles jamais poderiam aceitar Che como uma espécie de pequeno Jesus moderno, como vem sendo mundo afora desde os anos 60. O guerrilheiro que matou, mas, não nos esqueçamos, também morreu pela causa comunista fez sua interpretação sobre das mensagens de um futuro que diz que no presente não há paz. E também não há amor. O amor de nossos dias é um filme; um programa de computador. Che escreveu: “um povo sem ódio não pode derrotar um inimigo brutal”. Ódio. Enfim a palavra que eu queria dizer, raptada de Che. Como amar as corporações que estão destruindo o homem e a Terra, destituídas de qualquer tipo de remorso, respeito ou consciência ecológica, burlando leis ou mesmo fazendo leis à sua conveniência? Como amar nossos intocáveis Três Poderes que nada mais fazem além da vontade dos ricos que mandam no mundo? Os projetos do Estado jamais podem contrariar as elites, obviamente. E as elites, por sua vez, nada mais querem a não ser mais dinheiro, além da alma e o corpo do trabalhador-consumidor sob (o seu) controle. Acho importante e imprescindível os pobres se amarem. Um trabalhador amar outro trabalhador. Um irmão amar outro irmão. Pais e filhos. Vizinhos. Assim como a paz é importante entre iguais. Mas não me venha com a paz e o amor incondicionais, vendidos pela mídia: disso eu tenho nojo e medo; por isso tenho desprezo; dos que pregam a paz para manter o povo fraco... destes eu tenho ódio. Venha o novo ato. Tenhamos a paixão, a sabedoria e a criatividade para inventarmos (ou adivinharmos) a paz e o amor do futuro. Uma paz e um amor que não nos exclua.

(L.F., 16/11/2013, inspirado nas coisas da vida e em ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012)