Castelos de Diamantes
Estou estudando Teresa de Ávila há vários anos. Minha infância foi passada numa cidade com este nome, sem nunca termos sabido muito a respeito desta espanhola. Tudo o que soubemos é que ela foi uma freira, pela imagem do tamanho do meu corpo, num espaço especial só dela, na igreja imponente e silenciosa em plenitude. Cheia de vozes internas quando vazia! Uma cidade de colonização inteiramente italiana leva uma espanhola no nome. Comprei o primeiro livro sobre Teresa numa banca de livros muito baratos, naquela livraria onde lancei meu primeiro livro, um tímido exercício de poemas, e nove anos se passaram.
De uma coisa posso falar, no entanto. O “mais ou menos” nunca existiu na vida de Teresa. É nisso que penso hoje, quinhentos anos depois. Como ela, para mim, a vida é tudo e inteira de todos os dias, desde a hora que acordo, num ritual repetido sem nunca me cansar, que é incessante busca do que é bom, do conforto de alma e paz, muito mais importante que um vestido novo. Claro que eu sou muito vaidosa e amo usar batons; mas ultimamente estou numa viagem interior bem maior que isso. Estou vivendo intensamente e aprendendo, de verdade, que ser feliz é bem mais simples do que imaginamos.
Sempre deixo uma fresta aberta na cortina do meu quarto, para que eu nunca me esqueça da luz do dia ou da noite; para mostrar-me que existe vida do lado de fora, mesmo quando estou com os olhos molhados. Com esta minha intensidade frenética e peculiar da busca do aprendizado, seja em letras ou em experiências diárias, nunca consegui fazer uso de colírios para manter a minha visão viva. Quando eu me sinto muito cansada, simplesmente fecho os olhos e durmo, dando espaço para a chegada de um outro dia. Os dias são repletos de alegria e outros de saudade, impotência e questionamentos.
Neste nunca “mais ou menos” de Tereza, tenho pensado nos milhares de pais que vão vendo os filhos em busca de suas próprias vidas. Sempre nos dizem que criamos filhos para o mundo. O “ninho vazio”, expressão usada nos tempos atuais para a solidão que acomete cem por cento dos casais com filhos no mundo, chega para todos. Para alguns cedo demais, como foi o meu caso, por ser ainda jovem e querer muito ainda partilhar o café da manhã, os minutos preciosos de atraso para o trabalho, lavar as roupas dos meninos, conversar assuntos do dia a dia, ensinar e aprender uns com os outros. Quanta solidão eu vivi...
Hoje eu presto atenção ao olhar para as pessoas sozinhas dentro de seus carros, nas filas de supermercados ou feirinhas, nos cafés com açúcar mascavo, na ansiedade de fazer correr as horas, nos desafios de fazer parte das redes sociais, em todos os tipos de beijos trocados, nos textos que lemos e que nos ensinam sempre algo, nas noticias de jornais, nos filmes maravilhosos bem à nossa frente, nos bons dias e nos nem tão bons assim.
Quando estamos dentro deste castelo de diamantes que agora fazemos parte, qualquer gota de água que cai é ouvida. A folha da plantinha da varanda cresceu um pouco mais, aquela mancha na parede do quarto parece tomar tamanho desproporcional. Em tudo prestamos mais atenção. O corpo, que era um santuário de beleza, começa a mostrar sinais que os dias passam para todos. Aqueles longos “rabos de cavalo” que usava já não podem mais ter o mesmo caimento de um tempo que vai indo embora, bem devagar para os meus olhos, mas inexorável para a realidade visível.
O lugar onde eu moro tornou-se grande demais para mim e sempre vou achar que uma cama para dormir e alguns outros apetrechos indispensáveis serão sempre suficientes para que eu viva bem. Pra que ter um monte de imóveis, carros bonitos, se tudo que eu desejo é a presença de pessoas? Se eu tivesse que enumerar o que é importante na minha vida, eu diria, antes de tudo, que existisse um “chinelo velho para um pé cansado”.
Tudo que vem depois, que é a musica, a oração, a luz do sol, das estrelas e daquela lua que me levou a fazer tantos versos, a vassoura que varre a minha casa, os cheiros deliciosos de eucaliptos e lavandas, as roupas bonitas que adoro usar, o meu trabalho que amo, os muitos amigos, os adereços simples... Nada disso tem grande valor se continuo com este ninho vazio. Preciso urgentemente catar gravetos e formar um novo ninho, dando lugar ao novo. Assim como Teresa de Ávila, eu sou tudo. Nunca “mais ou menos”, sou exorbitante em sentimentos, sou rara em voz interior, sou vida e não feneço em minha fé, sou paz e despojada. Quanto mais o tempo passa, não busco do lado de fora o que sempre esteve dentro de mim.
Encontrei um chinelo velho e ele cabe perfeitamente nos meus pés.
Manhã de domingo, quinhentos anos depois de Teresa.
Teresa de Ávila escreveu cinco mil páginas em forma de cartas, em prosa e em versos, em períodos que subtraía a seu breve repouso noturno, sentada numa banqueta baixa e apoiada numa simples tábua, à luz de uma débil lâmpada a óleo. (Elizabeth Reynaud, Ed.Record, 1997, 2ª edição em 2001)
Ilustração : Google
Estou estudando Teresa de Ávila há vários anos. Minha infância foi passada numa cidade com este nome, sem nunca termos sabido muito a respeito desta espanhola. Tudo o que soubemos é que ela foi uma freira, pela imagem do tamanho do meu corpo, num espaço especial só dela, na igreja imponente e silenciosa em plenitude. Cheia de vozes internas quando vazia! Uma cidade de colonização inteiramente italiana leva uma espanhola no nome. Comprei o primeiro livro sobre Teresa numa banca de livros muito baratos, naquela livraria onde lancei meu primeiro livro, um tímido exercício de poemas, e nove anos se passaram.
De uma coisa posso falar, no entanto. O “mais ou menos” nunca existiu na vida de Teresa. É nisso que penso hoje, quinhentos anos depois. Como ela, para mim, a vida é tudo e inteira de todos os dias, desde a hora que acordo, num ritual repetido sem nunca me cansar, que é incessante busca do que é bom, do conforto de alma e paz, muito mais importante que um vestido novo. Claro que eu sou muito vaidosa e amo usar batons; mas ultimamente estou numa viagem interior bem maior que isso. Estou vivendo intensamente e aprendendo, de verdade, que ser feliz é bem mais simples do que imaginamos.
Sempre deixo uma fresta aberta na cortina do meu quarto, para que eu nunca me esqueça da luz do dia ou da noite; para mostrar-me que existe vida do lado de fora, mesmo quando estou com os olhos molhados. Com esta minha intensidade frenética e peculiar da busca do aprendizado, seja em letras ou em experiências diárias, nunca consegui fazer uso de colírios para manter a minha visão viva. Quando eu me sinto muito cansada, simplesmente fecho os olhos e durmo, dando espaço para a chegada de um outro dia. Os dias são repletos de alegria e outros de saudade, impotência e questionamentos.
Neste nunca “mais ou menos” de Tereza, tenho pensado nos milhares de pais que vão vendo os filhos em busca de suas próprias vidas. Sempre nos dizem que criamos filhos para o mundo. O “ninho vazio”, expressão usada nos tempos atuais para a solidão que acomete cem por cento dos casais com filhos no mundo, chega para todos. Para alguns cedo demais, como foi o meu caso, por ser ainda jovem e querer muito ainda partilhar o café da manhã, os minutos preciosos de atraso para o trabalho, lavar as roupas dos meninos, conversar assuntos do dia a dia, ensinar e aprender uns com os outros. Quanta solidão eu vivi...
Hoje eu presto atenção ao olhar para as pessoas sozinhas dentro de seus carros, nas filas de supermercados ou feirinhas, nos cafés com açúcar mascavo, na ansiedade de fazer correr as horas, nos desafios de fazer parte das redes sociais, em todos os tipos de beijos trocados, nos textos que lemos e que nos ensinam sempre algo, nas noticias de jornais, nos filmes maravilhosos bem à nossa frente, nos bons dias e nos nem tão bons assim.
Quando estamos dentro deste castelo de diamantes que agora fazemos parte, qualquer gota de água que cai é ouvida. A folha da plantinha da varanda cresceu um pouco mais, aquela mancha na parede do quarto parece tomar tamanho desproporcional. Em tudo prestamos mais atenção. O corpo, que era um santuário de beleza, começa a mostrar sinais que os dias passam para todos. Aqueles longos “rabos de cavalo” que usava já não podem mais ter o mesmo caimento de um tempo que vai indo embora, bem devagar para os meus olhos, mas inexorável para a realidade visível.
O lugar onde eu moro tornou-se grande demais para mim e sempre vou achar que uma cama para dormir e alguns outros apetrechos indispensáveis serão sempre suficientes para que eu viva bem. Pra que ter um monte de imóveis, carros bonitos, se tudo que eu desejo é a presença de pessoas? Se eu tivesse que enumerar o que é importante na minha vida, eu diria, antes de tudo, que existisse um “chinelo velho para um pé cansado”.
Tudo que vem depois, que é a musica, a oração, a luz do sol, das estrelas e daquela lua que me levou a fazer tantos versos, a vassoura que varre a minha casa, os cheiros deliciosos de eucaliptos e lavandas, as roupas bonitas que adoro usar, o meu trabalho que amo, os muitos amigos, os adereços simples... Nada disso tem grande valor se continuo com este ninho vazio. Preciso urgentemente catar gravetos e formar um novo ninho, dando lugar ao novo. Assim como Teresa de Ávila, eu sou tudo. Nunca “mais ou menos”, sou exorbitante em sentimentos, sou rara em voz interior, sou vida e não feneço em minha fé, sou paz e despojada. Quanto mais o tempo passa, não busco do lado de fora o que sempre esteve dentro de mim.
Encontrei um chinelo velho e ele cabe perfeitamente nos meus pés.
Manhã de domingo, quinhentos anos depois de Teresa.
Teresa de Ávila escreveu cinco mil páginas em forma de cartas, em prosa e em versos, em períodos que subtraía a seu breve repouso noturno, sentada numa banqueta baixa e apoiada numa simples tábua, à luz de uma débil lâmpada a óleo. (Elizabeth Reynaud, Ed.Record, 1997, 2ª edição em 2001)
Ilustração : Google