PUXANDO UM TEXTO
Desenho no vácuo noturno, com os olhos arregalados, uma linha do tempo. Uma não, várias, empilhadas como prateleiras do tamanho do mexer de olho lado a lado.
Pontuo aqui e ali eventos que marcaram minha existência. Levantam-se na penumbra do tempo aqueles fatos para os quais pergunto por que foram do jeito que foi, se poderia ter sido diferente, etc.
Ora bolas, o que vale a pena é terem acontecido, afinal poderei expressar-me em murmúrio auricular, bem pertinho de Deus ou quem quer que tenha a chave da eternidade ou o marcador do livro da vida, a frase imitando Neruda: “Confesso que vivi”.
Se bem que esse “vivi”, poderia ser bem mais, não fosse o sono irregular que deixa acordada de noite e me faz zumbizar de dia.
A questão é a qualidade do estar acordado durante o dia. Não é a mesma coisa, o mesmo sentir, o olhar para as coisas é diferente, tudo é visto através de uma cortina, de um véu, não se dá a perfeita comunhão entre mim e o estar no mundo, como se ele fora um imenso palco e eu, não o sujeito que atua, mas a platéia que observa sem interagir no espetáculo. Na sociedade capitalista vigente é necessário produzir, ou no mínimo fingir que.
Maldito! É meu grito de revolta contra o estado de coisas que vige. Não aceito, rebelo-me e reajo decisivamente, porque preciso viver e isto agora se traduz em ter inspiração para escrever, em achar que vale a pena, mesmo que o assunto seja escrever sobre o nada, a satisfação de cruzar a rua em frente ao Lindas Carnes (é o açougue da esquina), ir até à padaria comprar pão fresquinho (vendido agora a quilo), cruzar com aquele garçom todo enfeitado de ouro (exibe penduricalhos e bugigangas no pescoço e braços). Não falo de atividades domésticas, trabalho remunerado, ginástica, não quero entrar nessa ótica.
O que faz a falta de sono e de assunto.
Consulto o relógio. Olho lá fora. A cor branco leitoso que o vidro mostra diz que amanhece, fresco e gostoso nestes dias de outono, logo as primeiras notícias comporão o horror dos noticiários (a mais nova é o estudante sul coreano-americano), tomarei em jejum um comprimido tireoidiano com um copo dágua e me aconchegarei mais um pouco debaixo do edredom. A madrugada se despede.
O filho se levanta, me dá um beijo e sai. O parágrafo é porque não quis misturar filho com a feiúra do anterior. E porque esta é a parte especial mesmo. Explicando melhor, especial, propriamente dito, é ele.
O problema de escrever assim ou de outro jeito é que ao fim e ao cabo eu me pergunto: “E daí?” O que mudou no mundo? A Terra continua a girar, o sol a brilhar – ou não – o Universo não está nem aí (pretensão a minha).
Eu sei que texto de net precisa ser curto, pequeno como tudo na cultura atual, mas não posso perder esse ímpeto criador, esse derrame de idéias insolentes do qual fui acometida.
Os motivacionais dirão que o importante é não desistir, insistir. Aliás, eu poderia ter encerrado este texto alguns parágrafos acima, mas percebi que o ato de escrever estimula, a gente pega gosto, vence censuras, fica desavergonhado com as palavras. E depois há o desejo de ser absolutamente autêntico.
No entanto, objetivo a ocupar apenas uma página na tela do computador. É ela quem dita o término desse meta-texto-devaneio. E está quase terminando o reallity show literário, como no final dos filmes estrangeiros antigos, aparecerá The End, sem final definido, ou como naqueles que quando acendem as luzes a gente exibe aquele cara de vontade de xingar mas não pode, ou exibe semblante de satisfeito ou inteligente, ou fala que é filme de debate e reflexão, cujo entendimento fica para depois. Tem os que terminam com a cena dos personagens cada vez mais longe, a câmera se afastando, se afastando, se afastando, se afastando, se afastando, se afastando, etc. etc.
Eu queria dar um final de filme inteligente, final indefinido, final de dúvida, de pergunta, mas ocorreu-me deixar no final a frase: “Claro que vale a pena, afinal estamos vivos!”
E terminar com uma frase de cunho positivo: “Bendito existir!”. Disse o poeta (quem?) “Tudo vale a pena se a alma não for pequena”.
Minha tendência contestadora manda corrigir o poeta: “Quase tudo”.
20/04/2007