A locomotiva passando

Quando ouviu-se o primeiro apito, houve um certo alvoroço entre nós. O chefe da família deu um suspiro, resignado, pois sabia que agora não teria mais argumento para conter as crianças que já faziam estripulias no banco da frente. Todos se deram conta então de que o melhor que podiam fazer era ir até a janela mais próxima e simplesmente olhar. O que não seria uma tarefa fácil, pois há sempre muito mais pessoas dentro dos ônibus do que espaços disponíveis à janela. Os que conseguiram chegar puderam ver a locomotiva passando, ainda em seus primeiros vagões.

Excitadas com a inesperada visão, as crianças diziam coisas como “Olha só quantos vagões! Não consigo nem ver o último!”. A maioria parte dos adultos não dizia absolutamente nada, o que não significa que estivessem indiferentes ao acontecimento que presenciavam. Havia, por exemplo, quem estivesse concentrado contando o número de vagões. Quando finalmente conseguimos avistar o último deles, um desses senhores com cérebros matemáticos limpou a garganta e anunciou, triunfante: foram 87 vagões. Todos ficamos admirados, mas houve quem retrucasse e dissesse que na verdade foram 88. Como já não havia mais o que olhar, um senhor de bigodes aproveitou também para mostrar a sua erudição, esclarecendo que muito provavelmente a locomotiva transportava soja, e certamente se deslocava para o porto de Paranaguá, onde deveria chegar por volta das quatro horas da tarde. Mas a essa altura ninguém mais prestava muita atenção.

Houve quem reparasse ainda que algumas crianças empinavam pipas em cima dos trilhos, agora que o trem havia passado. Também este era um acontecimento digno de nota, pois até então não era sabido que crianças continuam empinando pipa onde quer que seja. Fique registrado, portanto, que este ainda é um meio das crianças gastarem as tardes de sol. Ainda hoje se empina pipa, ainda hoje se usa trens de carga para levar alguma coisa de um lugar a outro. Ainda hoje sente-se falta disso.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 12/11/2013
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